No início dos anos 80, Gilles Lipovetsky teve uma intuição. A palavra é dele. Escreveu “A Era do Vazio” (Edições 70), livro que era já um ensaio sobre o individualismo contemporâneo, numa época em que ainda não existiam selfies nem redes sociais. Lê-lo passadas quatro décadas não é um desperdício de tempo. Está lá tudo o que veio a existir de uma forma exacerbada neste nosso tempo e que levou ao que o filósofo chama de radicalização do princípio da autenticidade, do be yourself, bem presente até no discurso religioso católico. As raízes desta forma de estar, a que corresponde uma “revolução antropológica”, são antigas e devem ser procuradas no século XVIII, desde que Rousseau, Emerson, Nietzsche e todos os outros que se seguiram vieram dizer “não à razão e sim a mim mesmo, à minha subjetividade e à minha singularidade”. Aí nasce aquilo que Lipovetsky chama de individualismo de singularidade, ou individualismo ‘singularista’. É todo um programa individual de emancipação (em qualquer idade) que visa o bem-estar da pessoa, a sua liberdade, o seu interesse próprio — produzindo ondas de choque que agitam o sistema político. A conversa com Lipovetsky teve lugar na Embaixada francesa, em março de 2023, a propósito do lançamento de “A Sagração da Autenticidade” (Edições 70), o seu último livro.
Como surgiu a ideia, o conceito de autenticidade?
Dois fenómenos conduziram-me a esta ideia. O primeiro resulta da observação. A autenticidade está em todo o lado, da decoração à moda, ao turismo. Procura-se o autêntico e o rústico. Tudo é autêntico: uns óculos, um queijo ou um destino de viagem... O segundo fenómeno passa pelo facto de esse ideal de autenticidade individual estar a mudar-nos de forma profunda, a transformar o modo como vivemos a nossa vida, como vivemos em democracia e como concebemos o futuro. O ideal de autenticidade corresponde ao princípio que diz: “Sê tu mesmo, obedece ao teu coração, aos teus sentimentos, aos teus desejos, e não ao exterior.” Esta ética e este princípio são excecionais na nossa História. Nenhuma civilização, desde o Paleolítico até hoje, seguiu esta ética. Até agora, e em todas as civilizações anteriores, devíamos viver segundo a tradição, obedientes aos mandamentos de Deus, ao modelo de Jesus e ao dos nossos antepassados; ou seja, a algo exterior a nós. Mesmo os filósofos gregos, que inventaram a filosofia e a sabedoria, defendiam a obediência à razão universal, à razão do mundo. O século XVIII veio dizer não à razão e sim “a mim mesmo”, à minha subjetividade e à minha singularidade. Nessa altura, nasce aquilo a que se pode chamar individualismo de singularidade, ou individualismo ‘singularista’. O que corresponde, de certa forma, ao que Rousseau inventa ao dizer que todos somos diferentes e que devemos viver a nossa vida consoante o nosso ser e não através do que nos é imposto, usando a nossa consciência para julgar o bem e o mal. Para Rousseau, o homem é bom, tem um bom coração. Mas a sociedade, enquanto camisa de forças, com as suas normas, hábitos e convenções, é má. É a sociedade que distorce o homem, que o leva a mentir a si próprio, a viver com falsas necessidades de luxo, para corresponder a uma imagem que não está de acordo com o verdadeiro ser. Para Rousseau, o conformismo é o mal absoluto. E é evidente que Rousseau não está só. Ao longo do século XIX, Emerson, John Stuart Mill, Nietzsche vão colocar o indivíduo contra a sociedade e as suas convenções. O que é imoral a partir daí é ir contra a natureza. Vivemos a radicalização do princípio da autenticidade. À exceção dos fundamentalistas islâmicos, todos reclamam o princípio da autenticidade individual.
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