Cultura

Greve dos atores e argumentistas: Poderá a Inteligência Artificial levar ao desemprego e transformar Hollywood?

Ainda não se vislumbra um final para as negociações entre os estúdios de Hollywood e os atores e guionistas em greve. Numa das frentes do conflito menos exploradas, a da Inteligência Artificial, os estúdios recusam negociar, ampliando as preocupações dos profissionais do setor, que temem perder rendimento, ou até o próprio emprego, com a introdução desta tecnologia na indústria cinematográfica

ANGELA WEISS

A maior paralisação da indústria cinematográfica dos EUA dos últimos 60 anos, precipitada pelas greves simultâneas dos atores e argumentistas de Hollywood, é em parte justificada pelas reivindicações salariais destes grupos profissionais, que exigem ser melhor recompensados pelo seu trabalho.

Mas também está a acontecer pelo receio de uma revolução económica e criativa que, por agora, permanece algures entre a abstração e a realidade: a introdução da Inteligência Artificial (IA) no cinema e na televisão, e o seu potencial impacto nas carreiras de ator e guionista.

O receio não é infundado. Esta tecnologia possibilita aos estúdios apropriar a imagem e a voz dos atores com enorme facilidade, podendo usá-las para publicitar os seus filmes ou mesmo para alterar o conteúdo dos mesmos. Os atores, esses, querem garantias de que isso não substituirá a sua participação no futuro, e de que serão compensados caso venha a acontecer.

O realizador Scott Mann, por exemplo, também fundador da Flawless, uma empresa dedicada à exploração de ferramentas de IA na indústria cinematográfica, descreveu à Bloomberg como utilizou IA para remover linguagem explícita de alguns diálogos no seu último filme de modo a tornar o projeto mais acessível a uma larga audiência. Se fosse necessário filmar novamente as cenas em causa, reunindo todos os atores, o processo teria custado perto de 1,5 milhões de dólares (cerca de 1,4 milhões de euros), referiu Mann. Com recurso à IA, gastou apenas 150 mil.

Quanto à escrita, basta olhar para programas de linguagem que usam IA, como o famoso ChatGPT, para compreender como alguns estúdios possam sentir-se tentados a abdicar dos serviços de vários dos seus guionistas. A lógica é sobretudo financeira: os programas de linguagem são mais baratos, estão disponíveis 24 horas por dia, e evoluem cnstantemente em termos de complexidade criativa.

Argumentistas de Hollywood em greve, à qual se juntaram recentemente os atores
AUDE GUERRUCCI/REUTERS

Perante esta possibilidade, a Associação Portuguesa de Argumentistas e Dramaturgos (APAD) argumentou ao Expresso em maio deste ano que a luta dos guionistas, longe de estar limitada por motivações pecuniárias, assume contornos mais existenciais: “Acreditamos que não há ficção sem humanidade, e até ao dia em que pudermos ensinar essa humanidade às máquinas, não ficaremos nós, humanos, obsoletos.”

A APAD notou ainda que é necessário compreender que a qualidade dos conteúdos gerados por inteligência artificial “depende das bases de dados que são extraídas de conteúdos gerados por pessoas”, sublinhando que essa discussão tem de ser “encarada tanto nas suas ramificações profissionais, como éticas e legislativas”.

Em termos legislativos, a União Europeia está atualmente a finalizar as negociações relativas ao Artificial Intelligence Act, que irá estabelecer limites à utilização da IA pelas empresas. No que respeita à cultura, já em 2021 o Parlamento Europeu destacou a “importância de clarificar as condições de utilização de conteúdos protegidos por direitos de autor como entrada de dados (imagens, música, filmes, bases de dados, etc.) e na produção de produtos culturais e audiovisuais”, com o setor audiovisual a exigir que as empresas de IA sejam obrigadas a negociar licenças para treinar os seus programas.

Como é a IA utilizada no cinema e televisão?

Poderá a IA, de facto, substituir o trabalho dos atores e guionistas? Por agora, a resposta é negativa. Mas é impossível negar que esta tecnologia entrou de forma galopante na produção de cinema e televisão, sendo já utilizada avidamente pelos grandes estúdios nos EUA e um pouco por todo o mundo.

Contudo, para José André, cofundador da Irmã Lúcia, uma empresa portuguesa de efeitos visuais e pós-produção cinematográfica, estes dois grupos profissionais não serão os mais afetados. Essa sina está reservada para os editores e especialistas em pós-produção. Isto porque as ferramentas de IA “adequam-se na perfeição a todas essas tarefas, seja na edição, na montagem, na correção de cor ou nos efeitos especiais", explicou ao Expresso.

Tarefas fastidiosas como aprimorar a imagem dos atores após as filmagens, limpar o cenário de imperfeições ou incongruências anacrónicas, ou mesmo fazer a dobragem da voz das personagens, tudo isto pode ser feito com recurso a algoritmos de IA, mais produtivos do que uma equipa de editores e, eventualmente, também mais económicos. Na dobragem, particularmente, "isto vai deixar muita gente desempregada”, já que será possível fazer com que qualquer ator fale com a sua própria voz numa língua que não é a sua, salienta José André. “Claramente, num futuro não muito distante, um realizador e um ou dois atores poderão fazer um filme inteiro”, sentencia.

No dia 7 de agosto, indo ao encontro da ansiedade deste segmento da indústria, um grupo de mais de 50 especialistas em efeitos especiais nos estúdios da Marvel declarou a intenção de formar um sindicato, adicionando assim mais uma frente ao conflito laboral em Hollywood.

Ao mesmo tempo, multiplicam-se os exemplos da utilização de IA em grandes filmes nos EUA, desta vez manipulando diretamente a imagem ou voz dos atores. No mais recente filme da saga “Indiana Jones”, por exemplo, Harrison Ford foi rejuvenescido, com o seu consentimento, recorrendo a Inteligência Artificial.

Harrison Ford em "Indiana Jones e o Marcador do Destino"

“Indiana Jones e o Marcador do Tempo” - o título do último filme da saga - está longe der ser um caso único. A equipa por detrás do filme “Here” também aproveitou os avanços tecnológicos para rejuvenescer a imagem de Tom Hanks. Com o realizador Robert Zemeckis ao leme, a ação irá visitar a mesma sala ao longo de várias gerações, com as feições de Hanks a serem alteradas consoante o que cada cena requer.

Ainda noutro exemplo, que demonstra como alguns profissionais poderão vir a ser recompensados no futuro, o ator James Earl Jones, de 92 anos, chegou recentemente a acordo com a Disney para garantir que continuará a ser a voz da famosa personagem Darth Vader, da saga “Star Wars”, mesmo após a sua morte.

Mais preocupante, porém, é o conceito de “deepfake”, uma técnica que permite substituir pessoas em fotografias e em vídeos. Não é difícil imaginar que os estúdios possam utilizar a imagens dos seus atores para filmar conteúdo promocional ou até para filmar cenas do início ao fim. Em última análise, e se a tecnologia assim o permitir, os filmes poderão ser totalmente feitos sem a presença física de qualquer ator em estúdio.

Ainda não se vislumbra um final para as negociações entre os estúdios e os grevistas, em parte devido à intransigência dos primeiros face à apreensão dos segundos relativamente à IA. Os estúdios recusam abordar este tema por agora, estando a próxima ronda de negociações com os guionistas marcada para esta sexta-feira.

Texto de José Gonçalves Neves, editado por Mafalda Ganhão