Cultura

Kyiv ou Kiev? A linguagem como arma política

A verdade pode ser a primeira vítima da guerra, como disse alguém, mas as palavras (com quem a guerra tem uma ligação íntima) não anda longe

Foto: Getty Images

Kyiv not Kiev (Kyiv, não Kiev). É o nome de uma campanha lançada em 2018 pelo ministério dos Negócios Estrangeiros ucraniano. O seu objetivo é fazer com que os media, quando se referirem à capital do país, deixem de usar a grafia russa e passem a usar a ucraniana. Pareceu um pedido razoável, vindo do próprio país a que a cidade pertence, e considerando que a Rússia andava há anos a assolar a Ucrânia, promovendo separatismo e guerra em zonas do leste e anexando mesmo uma parte do país, a Crimeia – um ato não reconhecido pela comunidade internacional.

Instituições jornalísticas como o New York Times, a Associated Press, O Economist, o Guardian e outras responderam favoravelmente à campanha, passando a escrever Kyiv. Um ano depois, o governo americano passou a usar oficialmente essa designação, e não muito depois dezenas de aeroportos fizeram o mesmo.

Outras zonas e cidades ucranianas onde a questão também se punha eram Donbas (antes Donbass), Lviv (Lvov), Kharkiv (Kharkov) Odesa (Odessa). De modo geral, os nomes a substituir provinham do tempos do império russo e da subsequentes União Soviética, que consolidou e alargou várias conquistas do império.

A situação da língua russa como argumento

A questão do significado político dos nomes, e da forma como antigas zonas dominadas ou colonizadas, uma vez independentes, fazem questão de se libertar de nomes antigos e reclamar a sua própria identidade, não é difícil de entender para um português que se recorde do que aconteceu em antigas colónias portuguesas a seguir ao 25 de abril. A outro nível, as disputas linguísticas dentro de um mesmo país podem assumir dimensões políticas dramáticas, como aconteceu em Espanha com a língua basca, que chegou a ser proibida por Franco mesmo em conversas de rua a seguir à guerra civil.

Mesmo quando não é proibida, uma língua usada por um determinado grupo da população pode ser menorizada e discriminada, como forma de discriminar as pessoas que a usam. Há anos, terá sido esse o objetivo do então primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, quando fez com que o árabe deixasse de ser uma das duas línguas oficiais de Israel.

Quando Viktor Yanukovich, o corrupto presidente pró-russo da Ucrânia, teve de fugir do país na sequência do movimento popular Maidan em 2014, foi anunciado que uma das medidas tomadas pelo novo poder foi reduzir o estatuto da língua russa no país. Isso gerou reações, e deu a Putin um pretexto para dizer que os cidadãos de etnia russa estavam a ser atacados no país, ajudando a justificar os gestos agressivos que ele então tomou.

Embora o argumento do “genocídio” com uma dimensão linguística continue a ser usado por Moscovo, e a lei ucraniana determine que a língua ucraniana deve ser usada como língua oficial do estado, o russo continua a ser livremente usado numa variedade de media, dos jornais à televisão, bem como em instituições como hospitais, escolas, etc. De resto, não existe nenhuma separação do tipo da que existe entre o basco e o castelhano. As duas línguas são muito próximas, e os ucranianos e os russos, em termos linguísticos, compreendem-se tão ou mais facilmente do que os espanhóis e os portugueses, por exemplo.

Alerta de uma ucraniana em Portugal

Numa mensagem enviada ao Expresso, Oleksandra Boychenko, uma cidadã ucraniana a viver há cinco anos em Lisboa, pede aos media que evitem usar o que considera ser linguagem incorreta quando falam da Ucrânia. Não é só o uso de termos como “Kiev”, mas expressões como “crise da Ucrânia” ( em lugar de “agressão russa” ou “guerra da Ucrânia contra a Rússia”), “territórios de Donbass controlados pelos rebeldes” (em lugar de “territórios de Donbas ocupados pela Rússia”), “separatistas ucranianos” (em lugar de “forças lideradas pela Rússia”), etc.

A utilização de linguagem influenciada pela Rússia, acrescenta, torna mais difícil a experiência de viver em Portugal. “Não sentimos que somos ouvidos, não sentimos que vocês se importam, não sentimos que pertencemos aqui. Não nos sentimos seguros (….) A intenção de relatar sobre a Ucrânia e os ucranianos, recusando-se ao mesmo tempo a usar as palavras que pedimos ao mundo para usar quando falam de nós, cria uma sensação de falta de consideração real e profunda (…) Nós aprendemos a vossa língua – e pedimos que, quando estão a falar de nós, aprendam um bocadinho da nossa”.

Contactada pelo Expresso, Boychenko reconhece que a cobertura da situação na Ucrânia “melhorou bastante, durante estes tempos de escalada. Há muito mais detalhes, muito mais pormenores, muito mais apreciação profunda do que se está a passar. Principalmente no Expresso”. O maior problema, insiste, continua a ser a linguagem.

“Vai muito para além de algumas palavras, algumas letras. São coisas que têm um significado muito mais profundo”. Especialmente problemáticas são expressões como “separatistas”, explica. “Claro que a Rússia quer mostrar que é uma guerra civil, uma guerra entre ucranianos na Ucrânia, com a qual a Rússia nada tem a ver. Não é assim”.