Foi o autor de banda desenhada em língua espanhola mais vendido de todos os tempos e celebrizou-se por uma personagem que criou, Mafalda, uma menina de cinco anos com angústias existenciais e empenhada na paz do mundo - o argentino Joaquín Salvador Lavado, mais conhecido por Quino, faleceu esta quarta-feira aos 88 anos, deixando um legado que inspirou gerações.
"Ao recordar o Quino, a maior parte das pessoas vai sempre associá-lo de imediato à Mafalda e no entanto há mais Quino além da Mafalda", considera António, cartoonista do Expresso, que organizou uma exposição em 2017 em Vila Franca de Xira destinada a mostrar a obra de Quino fora do universo da personagem Mafalda. Na altura o artista não pôde comparecer à exposição por já estar com a saúde debilitada e se encontrar em cadeira de rodas, o que dificultava as viagens de avião.
"A Mafalda é uma contestatária, é uma personagem extraordinária com uma visão clara do mundo como ele tinha", salienta António, frisando que não é a personagem que está em causa e o que limitador é reduzir a obra de Quino a Mafalda, uma vez que o artista também produziu uma série de "cartoons livres, com análises" e um "olhar sobre a sociedade em que conta histórias através de desenhos, num estilo narrativo que não tem uma personagem".
"A Mafalda estava a dar-lhe cabo da vida"
Se Mafalda teve o mérito de inspirar gerações, também atingiu um estado em que a criatura acabou por dominar o criador ao ponto de lhe sugar a energia. "A dada altura o próprio Quino sentiu a necessidade de 'matar' a Mafalda, o que é uma coisa curiosa em relação a um personagem que ele próprio criou e que passados tantos anos se tornou dolorosa", faz notar António. Quino criou a personagem nos anos 60 e decidiu dar-lhe fim em 1973, após 1.928 tiras publicadas.
"A Mafalda estava a dar-lhe cabo da vida. Ele próprio dizia estar esgotado e que as coisas estavam a tornar-se complicadas por causa disso", salienta o cartoonista do Expresso, referindo que idêntico processo atinge vários artistas que criam personagens que se prolongam no tempo, como foi o caso do cartoonista Shulz, que criou a série Peanuts, marcada pelo personagem Charlie Brown e o seu cão Snoopy.
"Aconteceu o mesmo ao Shulz, que começou por contar histórias que lhe lembravam a infância, depois fazia-o a pensar nos filhos e depois a pensar nos netos. Mas há um momento em que isto começa a ser penoso e com o Quino foi dramático ao ponto de atingir a morte da personagem."
E António Alguma vez se defrontou com um processo igualmente penoso? "Uma vez fiz um desenho a dizer 'esta semana não aconteceu nada'", lembra António, frisando que para um cartoonista que produz obra crítica para jornais "o drama do papel em branco, e numa altura em que não se encontra um motivo, ser-se obrigado a tratar um não acontecimento é de fugir a sete pés". O que não era o caso de Quino, cujo trabalho "não estava tão marcado pela realidade imediata como o meu está".
António recorda Quino como "um grande senhor do cartoon", que expressou nos seus desenhos "uma problemática social" e uma visão do mundo em que ele próprio acreditava e cuja essência se mantém viva nos tempos atuais."Hoje lê-se o Quino como há 20 anos. Não é um artista datado e essa é uma das coisas boas que ele conseguiu", sublinha, insistindo que "é limitativo pensar no Quino só pela Mafalda".