Como o baiano João Gilberto inventou a bossa nova e mudou Copacabana, o Brasil e o mundo continua a ser um mistério. 50 anos depois é preciso tornar a agradecer aquela batida de violão e a pequena-grande voz de João.
Há exactos 50 anos, um cantor, uma canção e um disco mudariam a história da música brasileira e tornariam mais delicada e elegante a música do mundo. Com a revolucionária gravação de "Chega de Saudade", em 1958, João Gilberto dava forma e conteúdo à bossa nova, inventando um novo ritmo e uma nova forma de cantar e tocar violão. O resto é história, que, como um rio de muitos afluentes, desagua no mar de nossa memória pessoal e colectiva.
Com o sucesso de João revelavam-se a mestria de Antonio Carlos Jobim e do poeta Vinicius de Moraes, e o talento de jovens compositores como Carlos Lyra e Roberto Menescal, que estavam criando a nova música. De 1959 a 1962, João Gilberto lançou três LP históricos e a bossa nova virou moda.
Os jovens enchiam as academias de violão de Copacabana para aprender a nova batida e as músicas que seriam a trilha sonora dos Anos JK, quando o Brasil, sob o governo liberal, progressista e optimista de Juscelino Kubitschek, depois de ganhar pela primeira vez a Copa do Mundo de futebol, na Suécia, viveu um ciclo de progresso e desenvolvimento nunca visto, com a construção de Brasília em apenas quatro anos, a industrialização, a televisão, as novas estradas e fábricas: os brasileiros apaixonavam-se pelo futuro.
Todos queriam surfar na onda do sucesso da bossa nova. A publicidade e a imprensa adoraram o rótulo. JK foi chamado, com justiça, de "Presidente Bossa Nova". Surgiram o carro bossa nova, o apartamento bossa nova, o fato bossa nova, com um casaco e duas calças. Tudo virou bossa nova no Brasil provinciano, deslumbrado pelo futuro. Velhos cantores da Rádio Nacional gravavam bossa nova para tentar apanhar boleia no trem do sucesso. Até o veterano Vicente Celestino lançou a sua versão, operística e bombástica, da prosaica "O Pato", que o minimalismo de João Gilberto transformara em clássico bossa-novista.
Em busca da reciclagem redentora, tudo o que havia de mais velho afirmava-se bossa nova. Quando até a antiga União Democrática Nacional, partido conservador, moralista e golpista, de oposição ferrenha ao liberal JK, tinha a sua "bancada bossa nova" na Câmara dos Deputados, era o sinal definitivo de que a bossa nova tinha acabado no Brasil: se tudo era bossa nova, então nada mais era.
Em 1962 ninguém queria mais ouvir, falar e ainda menos cantar bossa nova. A nova geração, de Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, engendrava a futura MPB, o país fervia com os esquerdistas Jango Goulart e Leonel Brizola no poder, as forças políticas exacerbavam-se, havia grande agitação nas ruas, a economia soçobrava: não havia mais clima para uma música leve e sofisticada como a bossa nova. A nova música brasileira devia ser guerreira, participativa, politizada, falaria de favelados e pescadores, camponeses e operários, resgataria artistas populares marginalizados pela bossa nova, que seria denunciada como sub-jazz, ao serviço do imperialismo cultural americano.
Mas, a essas alturas, os grandes músicos do jazz americano já haviam descoberto e se encantado com a música moderna de João Gilberto, Antonio Carlos Jobim e Sérgio Mendes, que se estabeleceram em Nova Iorque após triunfarem no lançamento "oficial" da bossa nova nos Estados Unidos, em um histórico e caótico concerto no Carnegie Hall, em 1962. Já antes, a bossa nova havia fascinado gigantes do jazz como Miles Davis, Stan Getz, Gerry Mulligan e Bill Evans, que logo começaram a gravar o novo repertório e a convidar grandes músicos brasileiros a participar de seus discos, com maravilhosa repercussão na crítica mais exigente e entre o público jazzista.
Em 1964, enquanto o Brasil, após caótico período político e económico, mergulhava nas trevas da ditadura militar, a bossa nova consagrava-se nos Estados Unidos, com a conquista das duas categorias mais importantes dos prémios Grammy para o single "The Girl from Ipanema" e o álbum Stan Getz and João Gilberto, como "melhor canção" e "melhor disco", superando gente como os Beatles, os Rolling Stones, Frank Sinatra e Elvis Presley, no auge do prestígio e da popularidade.
Mas, vitimada pela radicalização política, a grande conquista passou quase despercebida. Nos bares de Ipanema, os jovens esquerdistas rosnavam: "Venderam-se ao imperialismo americano". Mas o resto do mundo começava a apaixonar-se por aquela música, aquela garota e aquele ritmo, que evocavam um país de sol, praias e sonhos: um amor que se tornaria eterno.
O resto é uma história de glória e permanente transformação, que continua sendo escrita, digitada, por todos os artistas dos mais novos estilos e gerações que se encantam com a bossa e a fazem sempre nova.
João e nós
Até ouvir "Chega de Saudade" com João Gilberto eu não me interessava por música. Em 1958, tudo o que se ouvia no rádio e nas poucas TVs a preto e branco era muito chato para adolescentes de classe média de Copacabana: era a música dos nossos pais. Depois de João foi como se alguém acendesse a luz e aumentasse o som (ou melhor, diminuísse), tornando a música e a letra mais leves, mais suingadas, mais elegantes e modernas. Tudo o que ele cantava parecia novo, com a sua nova batida, inconfundível, síntese do samba. A sua música era a trilha sonora perfeita para o estilo de vida alegre e liberal do Rio de Janeiro que se modernizava. João Gilberto era o nosso pastor e nada nos faltaria. Foi ele que inspirou e levou a minha geração (Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Edu Lobo, João Bosco, Roberto Carlos, e até mesmo Tim Maia e Jorge Benjor) a mergulhar num universo musical que não era mais o da Rádio Nacional, mas tinha um novo sol, mais brilhante, mais discretamente brilhante, com um alto teor de magnetismo e radioactividade.
Todos os que um dia foram tocados por sua música sabem (como Miles Davis, Bob Dylan ou Madonna e tardiamente Eric Clapton), como qualquer músico brasileiro de qualquer estilo ou geração sabe, que depois de ouvi-lo tudo soa (mesmo os melhores sons) mais barulhento, excessivo, áspero. Não que seja pior, mas certamente é menos suave, macio e delicado. Até Chet Baker soa assim depois de João.
De uma pequena cidade do interior da Bahia para - com a sua pequena voz e grande violão - mudar a música do planeta, como o genial criador da maior contribuição cultural (uma das raras) que o Brasil deu ao mundo nos tempos modernos, conhecida como bossa nova, mas na verdade uma criação original de João Gilberto. Sem a sua batida de violão não existiria bossa nova, é a sua base e coração.
Não há, dificilmente haverá, artista mais influente na história da música brasileira moderna. Sim, também Antonio Carlos Jobim, mas ninguém o influenciou mais do que João Gilberto. Como ninguém cantou Antonio melhor que João. O cineasta Glauber Rocha, que amava e respeitava João Gilberto, atribuía ao seu estilo intimista a "feminização" da música brasileira moderna: depois dele todos os homens passaram a cantar mais baixo e mais suavemente. Como Chico, Caetano, Gil, Roberto Carlos, todos. Em contrapartida, segundo Glauber, depois dele as mulheres passaram a cantar com mais força e "virilidade", como Elis Regina, Maria Bethânia e uma sucessão de cantoras vigorosas e dramáticas, de vozes potentes e grande expressividade, numa linhagem que prossegue com Alcyone, Simone e Ana Carolina. Glauber adorava uma polémica, João gosta de harmonia e silêncio. Dois baianos geniais, Apolo e Dionísio na Terra do Som.
Em João a revolução é permanente, "like a rolling stone". A prova, o seu disco "Voz e Violão", vencedor do Grammy de 2001, com as suas interpretações definitivas de "Desafinado" e "Chega de Saudade", 40 anos depois e, por qualquer critério ou conceito, musicalmente superiores às históricas versões originais, que serão sempre históricas, mas foram superadas pelo génio criador de uma obra em movimento permanente. É um espanto. Bem suave, mas sempre espanto.
Como Maria Callas ou Frank Sinatra, não interessam tanto as canções que ele canta, mas como as canta. A luz de João é o seu mistério, poucos personagens da nossa história musical terão uma colecção de lendas mais abundantes em torno do seu mito. Mas todos que o conhecem sabem: é um dos homens mais inteligentes e irónicos de que se tem notícia. Assim como sua música, sua inteligência e seu humor são especiais, e seu estilo de vida, recluso (mas de frente para o mar) e em trabalho permanente de aperfeiçoamento de sua obra, é muito especial, não permite especulações e estimula o mistério. Então, o melhor presente para ele é deixá-lo em paz.
Mas nem todas as palavras já escritas sobre João Gilberto, por alguns dos maiores e mais influentes artistas brasileiros, não só músicos mas de diversos campos de produção, valem juntas ouvir apenas uma de suas músicas: por exemplo, a nova versão de "Desafinado". Você vai entender tudo. Silêncio. Som na caixa, bem baixinho.
* Nelson Motta (n. 1944) é jornalista, escritor, agitador cultural e peça-chave na música brasileira desde os anos 60. Escreveu (e escreve) nos jornais, fez TV, rádio e lançou novos artistas, como foi o caso de Marisa Monte. Produziu Elis Regina, Gal Costa e Daniela Mercury. Trabalhou nas multinacionais do disco e é romancista de êxito. Contudo, os seus livros mais bem sucedidos são memórias da música e dos músicos brasileiros. "Noites Tropicais" e "Vale Tudo - O Som e a Fúria de Tim Maia" continuam inéditos em Portugal.
Texto publicado na revista Atual de 5 de julho de 2008