Sociedade

Miguel Câncio Martins: o arquitecto português que encanta lá fora

O arquitecto de interiores Miguel Câncio Martins, de 44 anos, é muito mais conhecido no estrangeiro - de França aos EUA, passando por Singapura - do que em Portugal, onde acaba de criar o interior de um restaurante no Chiado. Clique para ler a entrevista e ver o portfolio das obras do arquitecto.

Anabela Natário (www.expresso.pt)

Com o seu primeiro bar, levou o ambiente nova-iorquino para Paris. O Budha Bar, também na capital francesa, é um espaço asiático. O MAR Launge, no Porto, é sueco. Fez um restaurante indiano em Manchester, um italiano em Montreal... O que é o Restaurante Largo? Quando simplifica assim, parece... Eu fiz o que os clientes me pediram. Em Manchester, o cliente era do Bangladesh e queria um restaurante asiático, os meus clientes no Canadá são italianos... Aqui é mais internacional. Ainda pensámos (eu também participei um pouco) num italiano, mas o cliente tem outros restaurantes e queria uma coisa mais aberta, para poder brincar com a comida mediterrânica, mais portuguesa.

Comida internacional, um espaço internacional?! Sim. Falámos bastante de cozinha, do tipo, da categoria, se é uma coisa para comer rápido ou se é para ter mais ambiente. E o sítio é muito importante, não é? Fazer aqui ou fazer noutro local não é igual. O que me agradou, também, foi isto ter sido uma loja de materiais de electricidade, com tudo escondido... A primeira coisa que fizemos foi limpar para ver o que guardar, aquilo que teria potencial para o projecto, e achámos que era giro guardar a estrutura bruta. Estamos debaixo da igreja... e há a história desta zona que eu gosto muito. Então, optámos por uma intervenção bastante moderna, para contrastar com a casca.

Quando pensa num restaurante, o que é mais importante? Os clientes, além da comida que vai ser servida. E como as pessoas se vão apropriar dos espaços e dar-lhes variedade.

Há uns tempos, afirmou que o sucesso destes lugares está em saber misturar o cabeleireiro com o presidente da Microsoft e ter cantores ao lado de estudantes. Aqui, isso pode acontecer? Acho que sim. No sítio onde estamos, com a ópera ao lado, e há bastante gente jovem neste bairro... almoços e jantares, com a hipótese de se transformar em bar... Sim, dá para juntar esses públicos...

Já aconteceu fazer uma coisa completamente diferente daquela que o cliente pediu? Muitas vezes. Uma delas foi o projecto que fiz em Paris para um dos clientes com mais experiência em restauração. O proprietário dos Hippopotamus, que é uma das cadeias com mais sucesso, queria fazer a mesma coisa, mas para carnes brancas. Já tinha comprado o espaço e deu-me algumas ideias do que queria. Eu cheguei lá e pus o restaurante todo ao contrário: a cozinha e o bar na fachada e as pessoas a comer lá dentro. Ele ficou a olhar para mim, mas depois achou interessante. E, realmente, num sítio onde fecharam restaurantes atrás de restaurantes, ainda hoje funciona lindamente. Foi um desafio para mim, tinha de o fazer funcionar, de fazer uma coisa completamente diferente.

uantos projectos tem em andamento? Tenho quase sempre uns 20 projectos ao mesmo tempo, em estágios diferentes. Estou a fazer casinos na Holanda, uns quatro ou cinco. Acabei um restaurante no Canadá e vou fazer outro. Em Miami, também vou fazer um restaurante com as mesmas pessoas de Montreal e outras que lhes apresentei... Às vezes, junto as pessoas para se criar um conceito. Estou a fazer em Paris outro restaurante, para um português. Em Portugal, estou em dois hotéis, acabei este restaurante e vou fazer outro na Avenida da Liberdade. Em Marrocos, são dois hotéis e dois restaurantes. Tenho mais uma loja em Génova...

Uma boa parte das vezes entra também como sócio... Olhe, finalmente vou entrar como sócio num projecto em Portugal... uma "boite" (e sorri), no antigo Bar do Rio. Um conceito novo, diferente. E é com quem? Eheheheh! hã... com o Tó Ricciardi e... outras pessoas. Espero bem que por volta do Verão, depende da administração... da burocracia.

Nas cidades em que tem trabalhado, Lisboa é a mais burocrática? Não é a mais, mas é uma das mais burocráticas.

Dê-me outro exemplo onde ponham tantas dificuldades. É diferente. Por exemplo, na Holanda, temos tido dificuldade em fazer os nossos projectos, mas por serem casinos. É complicado, há um monopólio do Estado e também há privados, a quem o Estado tenta fazer a vida negra, mas gosta de receber os impostos... Realmente, é mais fácil nos outros sítios, Em França, são bastante exigentes, mas há prazos, há regras, uma pessoa respeita e não tem qualquer problema. Aqui, há regras, mas ninguém as respeita. É muito mais complicado do que noutro lado, e as pessoas acabam por contornar e fazer o que querem.

A sua carreira começou nos anos 90... Em 1994-95...

Já lhe chamaram o arquitecto da noite, agora começam a chamar-lhe o arquitecto da luz... Eu deixo as pessoas falarem... O que é importante é falarem, bem ou mal...

Mas a luz tem um papel importante nas suas criações? É importante. É engraçado ter falado primeiro na noite e depois da luz... o oposto. Acho que tem a ver com as fases da vida. Ao princípio, foi uma das maneiras de me afirmar. Gostava, tinha acesso, conhecia as pessoas, sabia o que queria para me divertir. Também gosto de tentar outras experiências. Por exemplo, sempre achei que havia muita coisa para fazer em hotelaria. Hoje, pelo mundo fora, já há muitos hotéis óptimos, renovados com gosto. Quando comecei, era um nicho a explorar. Mas gosto de espaços públicos, sobretudo.

Em 2005, fez-se sócio do seu pai, também arquitecto, porque, dizia, tinha de se organizar, já que se tornara escravo do sucesso. Conseguiu escapar a essa escravatura? Uma pessoa é sempre escrava do seu sucesso, infeliz ou felizmente... Estou sempre a tentar organizar-me melhor, mas... nunca se consegue chegar ao ideal.

Mas consegue tempo para si? Consigo, consigo... com a experiência... Aprendi com o arquitecto brasileiro Cláudio Wanderley, para quem trabalhei no início. Tínhamos uma obra em Paris, ele estava em Portugal e eu ia uma semana de férias e perguntei-lhe porque não vinha, para o cliente não ficar abandonado, e ele disse-me: "Vá de férias, quando você voltar a obra está lá à sua espera." Realmente, tinha razão, ninguém ia morrer por isso.

Faz restaurantes, discotecas, bares, hotéis, barcos, lojas, casas... Do que gosta mais? Depende do projecto. O que me dá gozo é ser o chefe de orquestra do projecto. Mas gosto de qualquer projecto, mesmo quando dizem que é pequeno. E um museu, faria? Adorava, também pelo trabalho de luz. Adorava!

Numa entrevista, afirmou: "Gostava de ajudar a melhorar a cidade. Temos tanto potencial, só falta é desenvolvê-lo." Que julga poder fazer? O problema é que uma pessoa fica sem saber por onde se deve pegar... Não sou político, também não estou aqui para criticar os políticos, mas acho uma pena, numa cidade como Lisboa, é só guerras entre uns e outros e esquece-se que o essencial é o interesse da cidade. Por exemplo, a história dos contentores escandaliza-me. Andamos há não sei quantos anos a falar de Lisboa se abrir para o rio, ligar o rio à cidade, como é que nem sequer se pensa ao fazer-se um contrato para pôr milhares de contentores naquela que deveria ser a zona nobre? Temos sempre aquela coisa do 'tem potencial', mas nunca se sai daí e, depois, acabamos por estragar o potencial. Por exemplo, agora que a Feira Popular saiu dali, em vez de uma urbanização, porque não fazem um jardim como deve ser? É preciso criar vida na cidade. As pessoas não se identificam com os seus bairros, como acontece em Paris.

Nasceu em Lisboa, estudou em Bruxelas, mora em Paris... Considera-se um cidadão da União Europeia. Portugal está em que lugar? Na Europa. Para mim, há Europa, Estados Unidos, Rússia, China... Acho-me europeu. Costumam perguntar-me o contrário, se eu me sinto belga, porque estudei na Bélgica, tenho a minha filha meia belga... e até já vivi mais anos fora do que em Portugal. Sou português cem por cento, mas sou europeu sem dúvida. Somos europeus, a nossa força é sermos europeus e não ser português, espanhol ou francês.

(Texto original publicado na Revista Única da edição do Expresso de 16 de Janeiro de 2010)