O sociólogo Boaventura de Sousa Santos desistiu da ação cível para tutela da personalidade, proteção da honra e bom nome contra quatro das 13 mulheres, investigadoras e antigas estudantes do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra que o acusaram de assédio. Agora, o fundador daquela instituição avançou com uma queixa-crime contra a totalidade do grupo, confirmou a Lusa esta terça-feira.
"Durante dois anos, o denunciante foi condenado sem julgamento (nem sequer sumaríssimo), sem sequer conhecer alguma vez uma única denúncia efetuada contra si depois de 2024. A conduta das denunciadas destruiu, irremediavelmente, uma reputação que levou mais de seis décadas a construir", lê-se na queixa-crime a que agência Lusa teve acesso.
A queixa-crime contra as 13 académicas, cujo comportamento Boaventura acredita configurar os crimes de difamação, com publicidade e calúnia, deu entrada no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Coimbra. De acordo com a queixa-crime, Boaventura pede a responsabilização criminal das 13 mulheres, afirmando que a sua reputação internacional e o trabalho desenvolvido foram atingidos de forma irreparável, acusando ainda as denunciantes “se associarem num coletivo para o difamar”.
“É manifesta a repercussão internacional que a agressão das denunciadas provocou e alcançou. A imagem, honra, prestígio do denunciante viram-se destruídos, violentamente abalados, senão mesmo aniquilados”, refere ainda o documento.
A desistência da ação de tutela da personalidade, escreve Boaventura de Sousa Santos no seu blog, deve-se com o facto de ter percebido que “essas sentenças não produzirão qualquer efeito útil" no seu "bom nome”. “Comuniquei hoje [15 de agosto], aos meus advogados, a minha decisão de abandonar as ações cíveis. Não posso, contudo, em consciência, deixar impunes todos e todas que me causaram (e a outras pessoas) este mal”, pode ler-se no texto, que considera que “não resta alternativa” se não a “punitiva”. “Por esse motivo, informo que, ao contrário do que era minha vontade há um ano, instaurei um processo criminal contra todas as assinantes da carta.”
Contactadas pelo Expresso, o grupo de 13 mulheres remeteu comentários para mais tarde. Sabe ainda o Expresso que ainda não foram notificadas nem da desistência da ação civil, nem da entrada da queixa-crime.
O julgamento da ação civil arrancou no final do ano passado e, após adiamentos, a magistrada responsável pelo caso entendeu que não se aplica o princípio da publicidade, ou seja, não foi permitida assistência nas sessões. O princípio da publicidade consagra o direito de “assistência, pelo público em geral, à realização do debate instrutório e dos atos processuais na fase de julgamento”, mas “não é absoluto”.
O que está em causa?
A ação cível movida por Boaventura de Sousa Santos era contra quatro das 13 mulheres que assinaram uma carta aberta, onde denunciam alegadas situações de “assédio moral, sexual, abuso de poder e extractivismo intelectual no CES” durante 20 anos. A carta em causa é a primeira em que as mulheres saíram do anonimato e revelaram as identidades.
Em causa estão ataques ao direito ao bom nome, imagem e à honra.
Em 2023, surgiram as primeiras suspeitas públicas de má conduta sexual e assédio laboral, após a publicação de um texto assinado por três investigadoras de pós-doutoramento e estudantes de doutoramento cujo único ponto em comum no currículo era o CES. Foi evidente que o principal acusado era Boaventura Sousa Santos, e o próprio admitiu que o texto era sobre si.
Foi então constituída uma comissão independente para investigar e que, em março deste ano, concluiu que houve “padrões de conduta de abuso de poder e assédio”, embora nas 114 páginas do relatório, os nomes de Boaventura ou do assistente também denunciado não sejam referidos.
“Da análise de toda a informação reunida, bem como das versões entre as pessoas denunciantes e pessoas denunciadas que foram compatíveis entre si, indiciam padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES”, pode ler-se nas conclusões do relatório que vinca ainda: mesmo com “a documentação apresentada e as audições realizadas” não foi possível “esclarecer indubitavelmente a existência ou não da ocorrência de todas as situações comunicadas”.
O relatório dá conta de 32 denunciantes, a maioria do género feminino (78%) e estudantes de doutoramento ou investigadoras (57%). Há 14 pessoas denunciadas, com diferentes graus de envolvimento. Em 27% dos casos trata-se de situações de cariz sexual (8% abusos e 19% assédio), tendo sido consideradas “assédio moral” 28% das queixas e 27% “abuso de poder”.
Alguns dos relatos são de “toques indesejados em partes do corpo como coxas, nádegas e zonas genitais” ou “relações sexuais com pessoas em posições hierárquicas inferiores enquanto estas se encontravam sob efeito de substâncias (ex.: álcool) e sem condições plenas para prestar consentimento livre e esclarecido”. Há denúncias de “contacto corporal não autorizado e desadequado”, “beijos húmidos e demorados” e “propostas de relações íntimas, sugerindo ou não ganhos secundários”.
Em reação, na altura, Boaventura de Sousa Santos disse estar tranquilo, explicando que a ausência de nomes no relatório final da comissão independente servia para constatar que não há “acusações diretas”. “Pessoalmente, estou mais tranquilo hoje do que estava há um ano. Nunca esperei uma absolvição das suspeitas que sobre mim pairaram porque, efetivamente, nunca fui confrontado com acusações concretas de abuso de poder ou de assédio - como, aliás, o próprio documento agora atesta”, disse.