Sociedade

“Quem cá vier não encontra uma espécie de gulag. O Técnico é um local aberto, acolhedor e multicultural”

O Instituto Superior Técnico, em Lisboa, foi criado há 111 anos e hoje é uma das maiores escolas do país e uma das mais prestigiadas da Europa na área da Engenharia. No dia do aniversário da instituição, o Expresso publica uma entrevista com o seu presidente, Rogério Colaço, que diz que congelar as propinas é um erro, que prejudica universidades e não resolve problemas de acesso ao ensino superior
Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico
Nuno Fox


Com mais de 10 mil alunos inscritos, o Instituto Superior Técnico (IST) já não consegue continuar a aumentar vagas sem prejudicar a qualidade do ensino, diz Rogério Colaço, em entrevista ao Expresso. O presidente do IST reconhece que a escola sempre foi, é e será bastante exigente, mas garante que quando se encontram excessos tentam-se corrigir. “Quem cá vier não vai encontrar uma espécie de gulag. O Técnico é um local aberto, acolhedor, multicultural.” No primeiro ano da reforma curricular que veio flexibilizar o leque de opções dos alunos e a forma como aprendem, Rogério Colaço acredita que as mudanças estão a merecer a aprovação dos alunos. Muitos estão a aproveitar para ir tirar cadeiras de Empreendedorismo, Gestão, Direito e até Filosofia noutras faculdades da Universidade de Lisboa.

O Instituto Superior Técnico (IST) iniciou este ano letivo uma reforma curricular. Que balanço faz para já?
A anterior direção quis aproveitar a restruturação dos ciclos de estudos que o IST tinha de concretizar (por lei, todos os mestrados integrados em Engenharia, de 5 anos, tiveram de ser desagregados em licenciaturas e mestrados) para reformular de forma mais profunda a oferta, os planos curriculares e os modelos de ensino. Acima de tudo, quis-se garantir mais flexibilidade nos percursos formativos e expor os estudantes a outro tipo de experiências oferecidas por faculdades diferentes da Universidade de Lisboa. Este é um ano ainda difícil de avaliar porque tivemos de transitar 10 mil alunos para este novo modelo. Mas diria que a perceção dos estudantes é positiva.

Uma das possibilidades abertas foi a de permitir que frequentassem cadeiras noutras escolas da UL. Os alunos aproveitaram?
Foi um sucesso. Tivemos estudantes de Engenharia a querer fazer Empreendedorismo e Gestão no ISEG ou a irem tirar cadeiras na área do Direito ou até Ética e Filosofia na Faculdade de Letras. É uma forma de experimentarem outras áreas, experiências e conhecerem outros colegas. Outra medida que tomámos foi a de permitir que os estudantes possam alargar a sua formação específica. Por exemplo, um aluno de Engenharia Mecânica pode ter interesse em Biomédica, Informática ou Cibersegurança e fazer também outra especialização. Temos neste momento 20 minors a funcionar. Mas se não quiser uma especialização completa e saber apenas um bocadinho de Gestão, Eletrónica e outra área também tem a possibilidade de escolher três cadeiras diferentes e assim aumentar a abrangência da sua formação curricular.

Numa reportagem publicada recentemente no jornal Público, houve alunos a dizer que no Técnico havia uma “glorificação do sofrimento”. Como comenta?
O Técnico é uma escola exigente, sempre foi e sempre deverá ser. É essa matriz de exigência que faz com que 96% dos alunos tenham emprego no momento em que concluem o curso e que a sociedade em geral reconheça a qualidade da formação da escola. Esta exigência está na sua matriz desde a sua formação. Dito isto, ela não pode ser nem um objetivo em si nem pode ser esmagadora.

E como se controla isso?
Há quase 30 anos criámos um sistema de controlo de qualidade das unidades curriculares que se baseia num inquérito aos alunos e que permite ter a sua perceção sobre aspetos que vão desde os conteúdos lecionados, à tipologia de avaliação, densidade das matérias, etc. Além disso, assim que um estudante entra no 1.º ano no Técnico, é-lhe designado um tutor com quem pode falar das dificuldades que está a ter. E existe ainda um programa de mentorado, em que o acompanhamento é feito por colegas mais velhos.

Quão frequentes são os relatos sobre a existência de cadeiras demasiado exigentes?
Consideramos que cada cadeira com uma taxa de reprovação superior a 20% tem uma baixa eficiência formativa. E sempre que tal acontece, essa disciplina é objeto de monitorização, tenta-se perceber o que está a acontecer de errado e corrigir no ano seguinte. Em cada semestre temos 700 unidades curriculares a funcionar e em menos de 50 essa taxa de reprovação é superior a 20%, o que dá menos de 8%. Não estou com isto a desvalorizar o número. Se há cadeiras em que os alunos sentem uma exigência desproporcionada, esse assunto é sempre tratado de forma séria pelas estruturas responsáveis. Também é preciso notar que estes dois anos e meio de pandemia foram muito difíceis, em particular para os estudantes. Os que entraram neste período, começaram as aulas sem sequer poder vir presencialmente à escola. O trabalho prático e de contacto teve de ser reduzido. Os próprios momentos de avaliação foram vividos com mais ansiedade por terem sido feitos à distância. O que sinto é que os estudantes ainda estão a sentir estes impactos da pandemia.

As notas baixaram?
O rendimento académico quase não foi afetado pela covid-19. Mas também acredito que para obterem os mesmos resultados, alunos, e também professores, tiveram de fazer um esforço adicional. É mais uma prova que o Técnico recebe dos melhores estudantes do país. Mas temos de reforçar os mecanismos de acompanhamento nas diferentes vertentes.

Na mesma reportagem do Público, falava-se numa lista de espera de seis meses no acesso aos serviços de acompanhamento psicológico no IST.
O tempo de espera atual no núcleo de apoio médico é de três meses. Mas qualquer estudante que lá vá é submetido no próprio dia ou no dia seguinte a uma primeira triagem. Se for um caso urgente é logo encaminhado para o SNS. Se não for é que fica em lista de espera. E lembro que o tempo normal de espera para uma consulta deste tipo no SNS é de 100 dias, superior ao nosso. Estamos agora a tentar reforçar o apoio médico e psicológico, sobretudo por causa destes dois anos especialmente difíceis.

A ministra do Ensino Superior pediu às instituições de ensino superior que criassem canais de denúncia de situações de abusos e assédio moral e sexual. O Técnico vai fazê-lo?
Criámos já a Provedoria do Estudante – o provedor foi nomeado há cera de um mês – para reforçar o reporte de situações que os estudantes entendam que não estão bem. Mas voltando aquela ideia referida atrás de que no Técnico se promove a cultura do sofrimento, eu não posso dizer que é isso que se vê na escola. Quem leia aquilo, imagina que entra aqui e encontra uma espécie de gulag e um sítio muito triste. E não é. Todas as pessoas estão convidadas a vir ao Técnico e verão que é um local aberto, acolhedor, multicultural.

Qual é a percentagem de alunos que não terminam os cursos?
A taxa de abandono pode ir até 30% nalguns cursos. Mas uma parte significativa diz respeito a transferência para outros cursos, dentro do Técnico ou outras faculdades, pelos mais variados motivos. E não conta com os que entram nessas mesmas formações vindos de outras áreas. É natural que uma pessoa quanto tem 17 ou 18 anos não tenha bem a certeza do que gosta menos ou mais e queria reformular o seu percurso. Ou seja, a taxa de abandono porque não se gosta da escola ou porque se deixar de ter condições económicas para continuar a estudar é inferior a 10%. Este valor deve ser melhorado e no Técnico tudo fazemos para que um aluno não deixa de estudar porque caiu numa situação financeiramente difícil.

Num dos inquéritos que fazem aos alunos, em quase duas mil respostas, houve 300 que disseram já ter sido expostos a situação de assédio moral e 100 de assédio sexual. Não são números preocupantes?
No ano passado, por ser o segundo ano consecutivo de pandemia, introduzimos nos inquéritos aos alunos meia dúzia de perguntas relacionadas com o impacto na saúde mental dos alunos e perguntámos, sem especificar em que situações ou contextos, se já tinham sido expostos a situações de violência ou assédio. Analisámos os dados e reforçámos os mecanismos de apoio, como o gabinete do Provedor do Estudante, sabendo que do lado do Técnico a resposta será sempre de ‘tolerância zero’ a qualquer situação de assédio. Os professores do ensino superior também têm de perceber que os padrões de exigência dos nossos alunos são hoje muito mais elevados do que os que tínhamos há 30 anos, que o que podia ser aceitável então já não é mais e que têm de estar à altura dessas mudanças.

A Assembleia da República pode aprovar na discussão do Orçamento do Estado o congelamento das propinas de licenciatura e de mestrado. Concorda?
A universidade pública portuguesa é a única instituição em relação à qual a dotação do Orçamento do Estado não cobre os salários dos funcionários públicos. Imagine um hospital, um tribunal, uma esquadra em que o dinheiro transferido pelo Estado não cobre essa despesa e que lhe seria dito que tinha de encontrar outras formas de arranjar financiamento. Essa situação seria tida como inaceitável. No entanto, ela passa-se com as universidades e mostra alguma desvalorização, social e eleitoral, a que a ciência, o ensino superior e o conhecimento têm sido sujeitos, por todos governos de há pelo menos 20 anos a esta parte. As propinas são uma compensação pelo escandaloso subfinanciamento da dotação do OE.

Baixar as propinas agrava o problema?
Formar um aluno no Técnico custa à volta de 8 mil euros por ano e a escola recebe 5 mil euros da dotação do OE. Como faltam 3 mil euros, propusemos que 1250 euros sejam suportados pelos alunos dos mestrados. E o restante, será o Técnico a encontrar fontes de financiamento. Se o Governo congela as propinas e nos diz que teremos de cobrar nos mestrados os mesmos 697 euros que nas licenciaturas, então vamos ter de dar aulas aos nossos alunos em laboratórios com equipamentos velhos, em salas mal ventiladas e outros problemas porque não temos capacidade de investimento. Não podermos cobrar aquele valor nas propinas de mestrado tem um impacto superior a dois milhões de euros de receita por ano.

Quem defende uma redução das propinas fá-lo por considerar que elas não podem ser um entrave à frequência de ensino superior.
É uma falsa questão. Uma propina de 1200 euros corresponde a 100 euros por mês: é um sexto do que um pai paga por um colégio privado ou um terço de um jardim infantil privado. A propina não é o fator determinante para um estudante aceder ou não ao Ensino superior. No tempo em que andei na universidade as propinas eram de 1200 escudos por ano (seis euros). Mesmo assim, um número significativo de alunos da minha escola não seguiu para o ensino superior. Não porque não podia pagar essa propina, mas porque tinha de pagar alojamento, alimentação e porque tinha de trabalhar. É demagógico dizer que as pessoas não vêm hoje para o ensino superior por causa da propina. O problema está na falta de bolsas para uma determinada franja social e que as impede de alugar um quarto e pagar a alimentação. Aí não se mexe. Se as propinas forem mesmo congeladas é um erro que se comete, prejudicial às universidades e à qualidade do ensino que oferecem e que não resolve nenhum problema no acesso à formação de ensino superior.

Se o Ministério autorizar, o Técnico vai continuar a aumentar as suas vagas nas licenciaturas em que é mais difícil entrar?
O Técnico está a atingir o limite em termos de infraestruturas e recursos humanos. Se formos forçados [pelo Ministério de Educação] a aumentar de forma significativa o número de alunos que entra não tendo capacidade para tal, o único resultado será termos salas sobrelotadas e alunos a protestar, com razão, contra as condições de ensino. Espero que tal não aconteça.