Por agora, Alexandre Pinto não pensa em sair: tem uma família, uma empresa e uma casa em Poltava, na Ucrânia (a cerca de 300 km da capital, Kiev, e a 150 km da fronteira com a Rússia). “A não ser que aviões com bombas me passem por cima da cabeça não penso sair”, diz o português de 57 anos que há quase duas décadas trocou Portugal pela Ucrânia. “Foi por amor, apaixonei-me.” E é também por amor à mulher e à filha (com dupla nacionalidade) e aos familiares ucranianos que entretanto ganhou que não tenciona fugir, apesar do aumento da tensão no leste do país.
“A situação está a alterar-se. Antes da bonança vem a tempestade e eu creio que a tempestade ainda nem chegou. De qualquer maneira não é uma tempestade que me faz abandonar o barco”, diz ao Expresso.
Tal como Alexandre, está William López. Sair da Ucrânia também não é uma opção. “Nas últimas 24 horas as coisas mudaram um pouco, mas não surpreendeu ninguém. Os ucranianos já estavam à espera que tudo isto acontecesse. A tensão que hoje [terça-feira] se sente a mais é por ninguém saber o que vai acontecer a seguir: se vamos usar a força, se vamos ceder o território como se fez em 2014 com a Crimeia”, explica o luso-brasileiro de 32 anos.
Nasceu na Bahia, aos três anos foi morar para Lisboa, de onde saiu já adulto para trabalhar no Reino Unido. Foi a partir de lá, a mais de dois mil quilómetros de distância, que conheceu pela internet a mulher com quem casou. Mudou-se para a Ucrânia e há nove meses foram pais pela primeira vez.
“Hoje tenho uma posição boa na empresa onde trabalho, tenho família, apartamento. Não podemos só sair daqui numa reação de cabeça quente. É natural que quem não tenha um compromisso cá, saia. Mas quem tem cá tudo? Não acredito.” E continua: “E fazia o quê? Largava tudo e ia para Portugal? Chegava lá, caia de paraquedas sem nada?”
William e a família moram em Tcherkássi, a 200 quilómetros de Kiev e a mais de 400 da fronteira russa. “Aqui ninguém acredita numa guerra em alta escala. As tropas acumuladas na região separatista não são suficientes para uma invasão em larga escala. O pânico maior foi causado pelos estrangeiros, a Ucrânia está em guerra há oito. Além disso, os ucranianos têm uma mentalidade muito mais forte. Até circulava a piada que se fosse um país europeu nesta situação, as pessoas já tinham todas ido a correr comprar papel higiénico e esvaziar os supermercados.”
Os dois portugueses descrevem que a vida corre com normalidade: as escolas estão abertas, as prateleiras nos supermercados continuam com a mesma variedade de alimentos e nada esgotou, os cinemas continuam com filmes, os centros comerciais funcionam, os bares de Kiev continuam a passar música durante a madrugada. “Ontem sai de casa com o meu filho e hoje vou fazer o mesmo para irmos ao parque. Aliás, mesmo que os ucranianos quisessem açambarcar e acumular comidas não tinham dinheiro para comprar em excesso, mal têm para comprar o que precisam no dia a dia.”
“Nunca sabemos o que pode acontecer”
A maior mudança na vida de William foi a rotina ao acordar: agora, pega sempre no telemóvel para ver as notícias e os desenvolvimentos da situação. “Está sempre tudo a mudar. O presidente ucraniano apelou à paz, querem resolver tudo pela via diplomática, mas há uma grande linha que já foi ultrapassada. Não há diplomacia que nos devolva a Crimeia e o que Putin fez ao reconhecer unilateralmente os territórios de Lugansk e Donetsk é rasgar o Tratado de Minsk e ignorar a diplomacia.”
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Para Alexandre Pinto, Vladimir Putin não quer a Ucrânia, “quer recuperar a influência que tinha e perdeu”. “Quer controlar o país, mas não quer ter a obrigação de o manter.” E teme um cenário em que a Rússia venha a entrar no país sem precisar de cruzar a fronteira.
“A Ucrânia tem quatro centrais nucleares, incluindo a maior da Europa [a Usina Nuclear de Zaporizhia]”, sublinha. “Se um míssil acerta, temos um desastre dez vezes maior que Chernobyl e aí é que ninguém ganha. Os russos têm mísseis no Mar Negro que não chegam a Kiev, mas chegam a uma central nuclear. Não precisam de entrar para dar conta de tudo.”
O empresário reforça que, ainda assim, “nada disto parece fazer sentido para os ucranianos”. Ninguém acredita que possa acontecer, insiste. “Esperemos apenas que não seja como a história do ‘Pedro e Lobo’, que foi sempre mentira até que um dia ninguém acreditou e afinal era verdade.” “Putin arranjou aqui uma forma quase legal de ter as suas tropas num território ucraniano, pode carregar com militares aquela região que ele, unilateralmente, reconheceu como independente”, acrescenta.
Alexandre Pinto chegou há Ucrânia há 17 anos. Na altura conheceu a mulher com que haveria de se casar através de um site de encontros. Foi conhecê-la, gostaram, correu bem. “
“Cai ali de paraquedas e quando chegou o momento de termos uma conversa séria, ela disse que não tinha nenhuma intenção de abandonar a Ucrânia. Para mim, foi uma pedra no charco e tive de reponderar tudo”, conta. “Deixei de ser diretor de recursos humanos, vim para cá, casei e acabei por comprar a empresa através da qual conheci a minha mulher, arrumei tudo ao meu jeito e agora sou o fundador da única associação de empresas se match making [de encontros] na Ucrânia. Encontrei aqui uma família excecional, muito unida e isso tem peso quando se vem de uma família com bisavós, avós e pais divorciados”, explica.
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Hoje, Alexandre tem uma filha de 13 anos que “é a maior de todas as preocupações”. “Em termos de carácter não sei se está preparada para o futuro que a Ucrânia lhe pode oferecer.”
Mesmo sem qualquer intenção de deixar o país, o português foi aos serviços diplomáticos portugueses na semana passada para atualizar os documentos da filha, que tem dupla nacionalidade. “Por via das dúvidas, nunca sabemos o que pode acontecer”, diz.
Embaixada portuguesa reforça pessoal
Ao contrário de países como os EUA, Portugal decidiu manter aberta a embaixada portuguesa em Kiev e, num movimento contrário, reforçou até o pessoal. Questionado pelo Expresso, o MNE recusou disponibilizar números exatos e remeteu a resposta para a declaração de Augusto Santos Silva, esta segunda-feira, após um encontro em Bruxelas com os seus homólogos.
“O ministro ucraniano foi muito claro ao pedir que mantivéssemos as nossas embaixadas abertas e localizadas em Kiev. Esse foi o nosso compromisso”, disse o ministro dos Negócios Estrangeiros português à margem do Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia em Bruxelas. “Não só não reduzimos o pessoal, como até reforçámos o pessoal presente na nossa embaixada, de forma a que o apoio consular devido aos cidadãos portugueses e luso-ucranianos possa ser garantido nas melhores condições possíveis”, acrescentou.
“Sou muito crítico da maneira como os EUA e o Reino Unido lidaram com tudo e pediram aos seus cidadãos para abandonarem a Ucrânia em 48 horas. Foi um alarmismo desnecessário”
William López
Segundo os dados disponibilizados pelo MNE, há cerca de 250 portugueses e luso-ucranianos registados na Ucrânia. Nos últimos dias, 40 abandonaram o país.
A embaixada entrou em contacto com os portugueses e luso-ucranianos no sentido de alerta para possível escalada de tensão e com uma lista de medidas e cuidados a ter nos próximos tempos — entre as quais, ter um carro disponível e combustível suficiente para, eventualmente, sair do país.
“Ao contrário dos EUA ou do Reino Unido, a embaixada portuguesa não foi nada alarmista e acho isso positivo. Apesar de não ter muito contacto com embaixada, acho que o que foi feito é proporcional a tudo o que se está a passar”, diz William López. “Sou muito crítico da maneira como os EUA e o Reino Unido lidaram com tudo e pediram aos seus cidadãos para abandonarem a Ucrânia em 48 horas. Foi um alarmismo desnecessário.”