A homossexualidade era considerada uma doença que tinha de ser curada. Numa variante moderna, ainda há quem considere que a homossexualidade é uma “construção social” (isto é, uma mania) e não uma natureza, uma substância. Não. A homossexualidade é uma realidade neurológica e biológica, ou seja, o homossexual foi criado de forma diferente numa espécie de neurodiversidade que tem dezenas de manifestações.
Esta diferença assusta os neurotípicos e, por isso, há a tendência para considerá-la uma doença ou erro. O canhoto também era visto como doente, logo tinha de escrever à força com a direita. Ainda assisti a este suplício dos meus colegas canhotos. Como é que há 30 anos ainda se obrigava uma criança canhota a funcionar contra o seu próprio cérebro? Porque é que tanta gente fica assustada com a ideia de que o homo sapiens pode ter inúmeras pequenas variantes ou diferenças no hardware mais profundo? Se a nossa pele tem tantas matizes, porque é que o cérebro haveria de ter modelo único?
Há um longo caminho a percorrer até que o público em geral – a começar nos jornalistas e na polícia – compreenda que os preconceitos que são ditos e reditos sobre “autismo” são tão ignorantes e preconceituosos como os preconceitos que eram ditos e reditos sobre gays. Para começar, assume-se que é uma doença que tem de ser curada. Não. O autismo não é uma doença, é uma forma diferente de pensar e sentir, porque deriva de um cérebro construído de forma diferente.
A diversidade manifesta-se no que temos de mais íntimo e pessoal, o cérebro. As terapias e medicamentos não são para curar, são para ajudar o autista a lidar com um mundo neurotípico que – do seu ponto de vista – está construído sensorial e socialmente ao contrário. O autismo não se cura. É preciso conhecê-lo, em primeiro lugar, para depois adaptá-lo ao mundo e para fazer com que o mundo se adapte um bocado ao autismo (não fazia mal ao mundo, diga-se; ficaria mais calmo, mais sereno, menos barulhento, mais lógico e menos irracional).
Os preconceitos continuam. Diz-se que os autistas não têm empatia, ou que são agressivos! Dizer que o autista “não tem empatia” e que “é agressivo” é tão idiota como os velhos preconceitos sobre o homossexual, “é histérico”, “é maricas”, “é lascivo”. São mecanismos defensivos de quem não se quer confrontar com a diversidade da espécie. O mito da agressividade até me dá vontade de rir.
Numa sociedade cada vez mais agressiva, oral e fisicamente, como é que há o topete para se considerar o autista como alguém mais violento ou dado à violência? O autista pode ter comportamentos sociais desajeitados no contacto com os outros, mas isso não é violência. O autista pode ter ‘meltdowns’, mas, nesse momento difícil, a tensão é defensiva; ele está a proteger-se e a pedir que o deixem sozinho, não está a atacar ninguém. O ‘meltdown’ surge quando a hipersensibilidade sensorial, por exemplo, atinge o ponto de saturação num ambiente social.
O primeiro passo para se compreender o autista é este: ele tem sentidos mais apurados ou, pelo menos, o cérebro dá-lhes uma maior vivacidade; ele sente mais o barulho, a luz, as texturas dos objetos, os cheiros. Se adicionarmos a isto um contexto social (uma festa, por exemplo), o autista pode entrar em ‘meltdown’ ou ‘shutdown’, é um colapso. Com o tempo, ele aprende a autorregular-se. À volta, os outros podem ajudar se olharem para esta pessoa sem mitos e manias.
Há um outro mito curioso que leva muita gente a usar o termo “autista” de forma errada, como por exemplo a nossa ministra da Saúde. Neste erro comum, usa-se o termo “autista” para descrever alguém fora do mundo, alguém que não presta atenção a nada, alguém dormente e desligado. Não. Através da sua extrema sensibilidade sensorial, o autista está mais atento ao que se passa à sua volta do que o neurotípico. Para ele, é difícil falar com os outros, porque está a receber muita informação dos sentidos. Além do mais, estudos novos indicam que esta sensibilidade também chega à empatia em relação aos sentimentos dos outros. É possível que sintam os sentimentos dos outros com enorme intensidade. Ou seja, a incapacidade do autista para falar deriva muitas vezes da sua extrema sensibilidade em relação às coisas e às pessoas.
Para terminar, deixem-me salientar a grande incoerência desta baixa mitologia. Como acontece tantas vezes com os preconceitos, o “autista” é usado nesta vulgata para uma coisa e o seu contrário, ora “é o agressivo”, ora é o oposto do agressivo, “o aluado distante”. A melhor coisa a fazer, como sempre, é ler para se perceber ou, pelo menos, para se tentar perceber.