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“Façam rampas, não estradas”: em defesa do skate, comunidade do Parque das Gerações contesta Câmara de Cascais. Hoje há uma sessão de esclarecimento

Em Cascais, os Amigos do Parque das Gerações temem que uma alteração ao Plano Diretor Municipal e as obras para eliminar a última passagem de nível do concelho sejam uma “sentença de morte” para um dos mais importantes skateparks do país. A comunidade acusa a Câmara de agir “nas costas” dos munícipes e lançou uma petição que tem já mais de oito mil assinaturas. Esta terça-feira, há uma apresentação pública que todos esperam que resolva as dúvidas sobre o projeto

(Foto: Nuno Botelho)

A vista desimpedida do mar e o céu limpo na manhã anormalmente soalheira para fevereiro pintam de azul o fundo idílico sob o qual se ergue o Parque das Gerações (PDG), em São João do Estoril. É a esta vista deslumbrante e à localização central e acessível que a comunidade de skaters local atribui um dos segredos para o sucesso desta estrutura. “É um sítio a que as pessoas gostam de ir, em que se sentem confortáveis e seguras”, dizem-nos.

Nascido do Orçamento Participativo de 2011 (a primeira edição promovida pela Câmara de Cascais), o PDG foi inaugurado em 2013 e era considerado um projeto único na Europa. Por estas rampas passaram importantes provas internacionais e daqui saiu um atleta olímpico. Gustavo Ribeiro foi o único skater a representar Portugal na estreia da modalidade nos Jogos Olímpicos de Tóquio e é atualmente o número três mundial.

Mas acima de tudo, destaca o proponente do projeto, este skatepark “mudou completamente o paradigma”. De um desporto de rapazes adolescentes, o PDG abriu o skate a novos praticantes, de todas as idades, géneros e perfis socioeconómicos, explica Pedro Coriel. Copywriter de profissão, foi o mentor do projeto que começou a idealizar em 2008, quando era presidente da associação de moradores local.

Amigos do PDG – da esquerda para direita: Pedro Coriel, Maria Roque, Eduardo Sousa, Nuno Quartin e Bernard Aragão
(Foto: Nuno Botelho)

“O PDG consegue ter miúdos dos Salesianos e do Saint Julian’s a andar de skate ao mesmo tempo que os miúdos do Bairro do Fim do Mundo [associado a problemas sociais e a fracas condições de habitabilidade] e são todos iguais. Ali não há cores, estrato social, conta bancária, roupas de marca. É tudo igual e isso é algo muito especial que se vive ali”, afirma Pedro Coriel, que aos 50 anos encontrou no PDG um lugar onde se sente seguro para voltar a praticar a modalidade da sua juventude.

É segunda-feira quando passamos os portões do PDG e, apesar de não pararem de chegar pessoas, a ocupação fica muito longe da registada aos fins de semana, quando os cerca de 12 mil metros quadrados deste parque público de Cascais são curtos para acolher todos aqueles que aqui se reúnem.

Mesmo nestas horas mais calmas há crianças, jovens e famílias. Numa rampa mais abaixo estão dois estrangeiros. Viajaram de propósito da Lituânia, onde há meses que o mau tempo os obriga a treinar em pavilhões, para aproveitarem o ameno inverno português. Mais ao lado está o skater mais novo do parque: frequentador assíduo, tem apenas um ano, mas já desce rampas sozinho sob a cuidadosa orientação do pai.

(Foto: Nuno Botelho)

E é assim, com todas as gerações representadas, que a manhã avança. Somos embalados pelo som contínuo das rodas que raspam o betão, o ladrar ocasional dos cães no dogpark, os risos, os gritos, os aplausos e as quedas.

De vez em quando há um som que se sobrepõe a todos os outros. É o comboio da linha de Cascais que passa a poucos metros. Percorrerá mais alguns quarteirões antes de parar na estação de São João do Estoril, onde existe a última passagem de nível do concelho, que em 2019 provocou dois mortos. É entre estes dois pontos que se desenha o conflito com a autarquia e que faz a associação dos Amigos do PDG temer pelo futuro do parque.

Autarquia garante contrução de “túnel” e que “à superfície ficará exatamente na mesma”

As primeiras dúvidas sobre o futuro do PDG surgiram no ano passado. De acordo com o Plano Diretor Municipal (PDM, o instrumento legal que serve de base à gestão e ordenamento do território) em vigor, o encerramento da passagem está previsto através da construção da Via Circular Nascente, que sairia da Marginal em direção a uma rotunda construída para distribuir este trânsito a norte da Escola Secundária de S. João do Estoril.

No entanto, numa reunião com a Câmara Municipal de Cascais (CMC) em abril de 2021, os concessionários do parque (seis sócios, incluindo os donos da loja de skate, que ganharam o concurso para dinamizar a estrutura) foram surpreendidos com a informação de que a autarquia estaria a estudar uma alternativa. A nova ligação em estudo iria desembocar no bairro da Quinta da Carreira, atravessando o parque ao meio.

Quando tomou conhecimento, Pedro Coriel denunciou a situação no seu Facebook pessoal. Na publicação, acusa a CMC de violar o seu próprio PDM ao construir nos terrenos há muito reservados para a Circular Nascente e de querer “destruir o projeto mais emblemático” que saiu do Orçamento Participativo (OP).

Questionado pelos munícipes durante um direto no Facebook, o autarca de Cascais negou as acusações. “Leiam os meus lábios. É falso. Ninguém vai acabar com o Parque das Gerações”, afirmou Carlos Carreira. “Vai ser feito um túnel que passa por baixo do PDG. À superfície ficará exatamente na mesma, ou melhor porque vamos fazer uma intervenção também no PDG para o melhorar ainda mais.”

Ao Polígrafo, fonte oficial da autarquia avançou que a imagem do projeto, que circulava nas redes sociais e mostrava a via a atravessar o parque era “uma alternativa ainda em fase embrionária”, que “faria a ligação em túnel da Marginal ao parque de estacionamento” em frente ao PDG, “preservando na íntegra a totalidade do perímetro do parque”.

No entanto, volvidos oito meses, os utilizadores do parque foram novamente surpreendidos. A 3 de janeiro, os concessionários deram pela visita de um topógrafo. O próprio técnico admitiu estar a realizar um levantamento “a pedido das Infraestruturas de Portugal, no seguimento do estudo da ligação rodoviária da Avenida Marginal a São João do Estoril”, informaram no Instagram do PDG.

Documentos descrevem “passagem inferior sob a linha de comboio” e não mencionam parque

Face a este novo desenvolvimento, Pedro Coriel decidiu consultar o PDM que está desde 23 dezembro até 28 de fevereiro em período de discussão pública. Na ficha de alteração 308, a autarquia propõe uma “alteração substancial ao traçado da via”, abandonando o plano em vigor em detrimento da criação de um “novo nó e passagem inferior sob a linha de comboio” (e não um túnel sob o parque).

A proposta visa também modificar a classificação dos terrenos circundantes à nova via de “espaço de equipamento” para “espaço verde de proteção a infraestruturas”. Nos mapas da proposta, o local onde é atualmente o PDG passa a ser atravessado a meio por um traço verde.

Dos documentos disponíveis para consulta pública consta também o orçamento para esta proposta, datado de setembro de 2020 (um ano antes da autarquia afirmar ao Polígrafo que esta era “uma alternativa ainda em fase embrionária”). A CMC prevê gastar 1,7 milhões de euros (425 mil euros anualmente entre 2022 e 2025).

A estes soma-se a assinatura de um contrato de aquisição de serviços celebrado entre a Infraestruturas de Portugal e a Betar Consultores para o “Estudo Prévio e Projeto de Execução para Supressão da Passagem de Nível ao KM 022+556”, publicado na plataforma de divulgação de contratos públicos (Portal BASE) a 7 de dezembro de 2021, ainda antes do início do período de discussão pública.

Nenhum dos documentos menciona o nome Parque das Gerações. “É como se não existisse”, lamenta Pedro Coriel. Membro-fundador da associação Amigos do PDG, sublinha que o orçamento previsto não é suficiente para construir um túnel como o descrito pelo autarca e acusa a CMC de agir “nas costas do concessionário”. Ouvidos pelo Expresso, dois dos seis elementos do grupo de concessionários confirmaram só terem tido conhecimento da intenção de alterar o PDM quando esta informação se tornou pública.

Contactada pelo Expresso, a Câmara de Cascais recusou responder às perguntas. Numa nota enviada por escrito afirma que “mantêm-se atuais e válidas as declarações do Presidente da Câmara, Carlos Carreiras, feitas no ano passado sobre o mesmo tema”. Num artigo de opinião no jornal i, o autarca reafirma tratar-se de um túnel e que “a Câmara de Cascais não vai destruir o Parque das Gerações, pelo contrário até o vai melhorar e ampliar”. No mesmo texto, Carlos Carreiras ataca a comunicação social que noticiou recentemente este caso e os utilizadores do parque que se têm manifestado contra o projeto.

Para esta terça-feira às 21h está agendada uma apresentação pública do PDM na sede da Junta de Freguesia de Cascais e Estoril. Autarquia e munícipes esperam que finalmente se esclareceram definitivamente os contornos deste projeto.

“Make ramps, not roads”: comunidade “de luto” para salvar a sua “casa”

Preocupada com o futuro do PDG, a comunidade organizou várias manifestações de apoio. Através das redes sociais, foram partilhadas informações sobre como participar na discussão pública da alteração ao PDM e mobilizada a comunidade para assistir à reunião camarária de dia 25 de janeiro, na qual intervieram três Amigos do PDG. “Tomara eu que as infraestruturas de Portugal façam o túnel, porque estão neste momento a desenvolver projetos”, respondeu-lhes nessa sessão o autarca, que afirmou também que o PDG “nem sequer vai ser fechado durante a obra”.

No Instagram repetem-se os apelos e multiplicam-se os testemunhos de vários utilizadores. As manifestações de apoio alargaram-se à comunidade do surf (que também utiliza o parque para treinar), com declarações públicas dos surfistas profissionais Nicolau Von Rupp e Miguel Blanco, mas também da própria federação.

(Foto: Nuno Botelho)

Há cinco semanas, o parque acordou vestido de preto. As rampas foram pintadas com palavras de ordem, como “Make ramps, not roads” (inglês para “façam rampas, não estradas”), “PDG é a nossa casa” e “#Long Live PDG” (“Longa Vida ao PDG”). A vedação foi também coberta por cartazes, muitos deles escritos em caligrafia de criança, onde se repete o apoio e ecoa o significado do parque para a comunidade.

“A maior parte das pessoas que frequentam este skatepark são moradoras aqui. Não têm interesse nenhum em que a passagem de nível continue”, explica Maria Roque, professora de skate no PDG. “Por nós fechem-na ontem, se for possível. Estamos só a questionar: porquê aqui? Se há outras soluções claramente mais viáveis.”

A nova esperança passa agora pela petição pública que reúne já mais de oito mil assinaturas (acima das 7500 necessárias para serem recebidos na Assembleia da República). “A ideia é demonstrar que o PDG é maior que Cascais e que isto não é uma coisa só concelhia. Isto é um parque com importância desportiva, para a comunidade e mesmo a nível da economia e turismo”, explica Pedro Coriel. “[Queremos] tirar o parque da esfera meramente municipal para a esfera nacional, porque este é um projeto nacional a todos os níveis.”

Amigos do PDG acusam autarquia de deixar parque ao abandono

Em 2017, o PDG venceu pela segunda vez o Orçamento Participativo de Cascais, com 5640 pessoas a votarem pela expansão e requalificação desta infraestrutura. Com um orçamento de 300 mil euros, o projeto prevê a construção de uma flow bowl – uma espécie de piscina na qual se pratica uma das duas provas de skate dos Jogos Olímpicos e que seria a primeira do género em Portugal.

(Foto: Nuno Botelho)

Até hoje o projeto não saiu do papel e o PDG, que nunca teve obras de manutenção, começa a dar sinais claros de desgaste. Um segundo olhar às rampas e pavimento torna evidente as largas rachas que cobrem quase todas as superfícies.

“Aquela rampa está a tornar-se uma preocupação. Todos os dias vejo-a a distanciar-se mais. Já não é uma questão do Orçamento Participativo ou do PDM. É uma questão de segurança”, descreve Maria Roque. “As rampas já não estão praticáveis. Às tantas já está a ser a comunidade que se junta, recolhe dinheiro e vimos para aqui tapar buracos. Se ninguém vem reparar, se isto já está a começar a ser perigoso e as pessoas já estão mesmo a magoar-se…”

“Quem anda de skate sabe que com uma pedrinha é o suficiente para sairmos disparados”, acrescenta Eduardo Sousa, skater e pai de três filhos que também frequentam o parque.

“O parque está ao abandono. Só é mantido porque as pessoas têm uma sensação de pertença com o parque incrível”, acusa Pedro Coriel. O proponente sublinha ainda a falta de condições. Ao contrário do que acontece noutros parques do concelho, o PDG não tem seguranças, nunca teve iluminação pública e tem apenas uma casa de banho (paga e que está frequentemente fora de serviço). O caminho em torno das rampas é em terra batida e fica enlameado no inverno e os terrenos envolventes têm ervas e azedas a crescer, mas sem rega tudo seca no verão. “Não há sequer uma coerência com o resto dos equipamentos municipais”, remata.

“Às vezes estamos a andar de skate e às tantas estamos preocupados porque há pais com carrinhos que, como não têm caminho arranjado, têm de passar pelo meio do skatepark. Tenho amigas que já partiram pernas precisamente a tentarem desviar-se de pessoas”, narra Maria Roque. “Às vezes tenho de parar as aulas para os meus alunos irem ao Pingo Doce à casa de banho. Não há condições mínimas”, afirma a jovem professora de skate.

“Vimos alguma luz quando o parque ganhou outro Orçamento Participativo e ficámos na esperança que realmente se conseguisse melhorar as coisas”, conta Eduardo Sousa. “Como utente mandava emails à CMC a perguntar quando é que o Orçamento Participativo ia arrancar e respondiam sempre que seria até 2020, que andavam a fazer levantamentos e iriam arrancar com as obras. Nunca aconteceu nada.”

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