Nelson Afonso, um insuspeito engenheiro eletrotécnico da Sertã, é acusado pelo Ministério Público de 16 crimes de incêndio florestal. Um é especialmente agravado porque destruiu 33,6 mil hectares de floresta num fogo que começou na Sertã e se alastrou a cinco concelhos. No total, o arguido, que recorria a uns engenhos nunca antes vistos pela PJ, é suspeito de ter ateado fogos que destruíram 65 mil hectares de floresta. Mais ou menos toda a área ardida em Portugal durante os anos de 2020 e 2021.
A caça ao homem levada a cabo pela Polícia Judiciária (PJ) durou cinco anos, entre 2017 e 2021, e terminou no mesmo dia em que Nelson Afonso ateou um fogo em Proença-a-Nova que foi combatido a tempo pelos bombeiros. Nesse dia — 18 de julho de 2021 — a PJ descobriu um engenho que já tinha encontrado em fogos anteriores e que conseguiu ligar ao suspeito. Nelson Afonso confessou parte dos crimes, que justificou com o trauma sentido com a morte do pai num acidente de trator quando os dois seguiam no veículo. O suspeito foi sujeito a uma perícia psiquiátrica, que detetou “uma perturbação depressiva” e “stresse pós-traumático” que “não condiciona o livre arbítrio”. Ou seja, o indivíduo é perfeitamente capaz de distinguir entre o bem e o mal.
Seis meses depois, é acusado pelo MP e deverá continuar em prisão preventiva na cadeia de Castelo Branco. Mas a defesa já apresentou um pedido de libertação, alegando que o prazo máximo para o acusar acabava a 18 de janeiro.
Nelson Afonso terá confessado ao juiz que gostava de assistir ao pânico das pessoas. Mas nem foi isso que mais impressionou os investigadores. No dia 22 de junho de 2017, pouco antes das três da tarde, deflagrou um incêndio na zona da Santinha. Na origem do fogo, segundo a investigação, esteve “um engenho incendiário idealizado, construído e colocado naquele local pelo arguido”. Na mesma altura, a pouco mais de 17 quilómetros, em Pedrógão Grande, o combate ao grande incêndio que matou 66 pessoas entrava no quinto dia. “Não obstante a realidade trágica que se vivia”, o arguido “fez deflagrar um engenho incendiário”, espanta-se o inspetor da PJ que investigou o caso.
Um incendiário diferente
Nesta investigação, a PJ empregou métodos raramente utilizados neste tipo de crime, porque Nelson Afonso sai completamente do perfil habitual do incendiário. Não tem hábitos alcoólicos, é licenciado, tem 40 anos, trabalhava como chefe de turno numa empresa sólida e planeava cuidadosamente cada incêndio como se de um assalto se tratasse: concebeu uns engenhos incendiários que eram acionados com um temporizador, o que lhe permitia estar sempre a uma distância considerável do local do crime. E escolhia sempre locais que pela sua configuração e características ardessem facilmente. E foi isso que pôs a PJ na sua pista.
Quando encontrou o primeiro engenho — “um artefacto constituído por uma fonte de energia autónoma (pilhas ou baterias), um circuito temporizador eletrónico e uma lâmpada com o bolbo esmerilado de forma a deixar o filamento de incandescência em contacto com a matéria combustível, tudo ligado por fios elétricos” —, a PJ percebeu que tinha de ser alguém com conhecimentos técnicos bem diferentes dos habituais “fósforos atados a paus de incenso ou outros artefactos de natureza rudimentar” usados por incendiários vulgares. Depois, perante os locais escolhidos — só acessíveis a pé ou por viatura todo o terreno —, a PJ concluiu que “o autor da colocação do engenho seria um perfeito conhecedor da geografia local”.
Mas o facto de os engenhos estarem completamente carbonizados quando eram descobertos pela polícia impossibilitou a identificação de elementos que permitissem chegar ao incendiário. Até que um incêndio que foi imediatamente apagado possibilitou a recuperação ainda em bom estado de um dos artefactos. A PJ descobriu que o telemóvel do suspeito tinha sido acionado na zona e uma investigação aos movimentos bancários revelou que Nelson tinha comprado pilhas no Intermarché iguais às usadas nos fogos e lâmpadas como as do engenho. A caça acabou ali.
Nas buscas à casa do suspeito, a PJ encontrou lâmpadas compradas numa loja online iguais às usadas nos engenhos incendiários. Nelson Afonso confessou ser ele o autor dos incêndios que deflagraram na zona em 2021 e disse ter tido “um assomo” que o levou a construir os engenhos com o material que tinha em casa “por acaso”. A PJ não acreditou nesta versão e considera que até pode ter sido ele o autor de um incêndio nunca esclarecido que destruiu mato e floresta em 2103. Três anos antes da morte do pai do suspeito.