Samuel, um intérprete que trabalhava para as tropas portuguesas em missão da ONU na República Centro-Africana (RCA) pôs em xeque a rede de tráfico de diamantes, ouro e droga liderada pelo comando Paulo Nazaré.
Samuel, que inicialmente seria cúmplice do esquema, recebendo 20% das comissões pela venda de diamantes por fazer a ponte entre fornecedores locais de diamantes e os portugueses, acabou por se sentir prejudicado num dos negócios e no início de 2020 acabou por denunciar tudo à Polícia Judiciária Militar, levando ao início da Operação Miríade da Polícia Judiciária, que fez onze detidos, entre militares, ex-militares, um militar da GNR em formação, um elemento da PSP de Lisboa e um advogado.
A informação, já avançada pelos jornais “Inevitável” e “Público”, foi confirmada ao Expresso por fonte judicial. O intérprete estava ao serviço das Nações Unidas, que também abriram uma investigação ao caso.
Quanto ao líder do negócio ilegal, Paulo Nazaré, preparava-se para fugir para a África do Sul, como avança o “Jornal de Notícias”. Os inspetores da PJ detiveram-no na segunda-feira de manhã e o principal arguido do caso acabou por não conseguir escapar.
Paulo Nazaré é comando e terá iniciado o esquema quando se encontrava numa das primeiras missões portuguesas ao serviço das Nações Unidas naquele país africano, entre 2017 e 2018.
Os onze detidos do caso, que envolve ainda mais 60 pessoas e 40 empresas que serviam para branquear o dinheiro do negócio internacional, estão a ser interrogados desde terça-feira pelo juiz Carlos Alexandre no Juízo de Instrução Criminal de Lisboa.
O esquema começava na RCA, envolvendo fornecedores locais de diamantes, ouro e droga, material que era traficado nos aviões militares que não são sujeitos a controlo das autoridades aeroportuárias. Depois, era tudo vendido no norte da Europa, nomeadamente em Antuérpia, na Bélgica.
Alerta em 2019 (mas Marcelo não foi informado)
Em dezembro de 2019, o comandante da 6.ª Força Nacional Destacada na RCA avisou o Estado-Maior-General das Forças Armadas sobre o que se estava a passar. A Polícia Judiciária Militar foi ativada mas depressa o Ministério Público colocou a investigação nas mãos da Polícia Judiciária civil.
O ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, disse ter tido conhecimento do caso nessa altura, tendo alertado as Nações Unidas no início do ano seguinte.
O Presidente da República, que é por inerência do cargo o comandante supremo das Forças Armadas, é que não foi informado. Marcelo Rebelo de Sousa revelou que o ministro da Defesa lhe “explicou” esta terça-feira que “naquela altura [início de 2020] comunicou às Nações Unidas, porque se tratava de uma força das Nações Unidas, que havia suspeitas relativamente a um caso em investigação judicial, e que na base de pareceres jurídicos tinha sido entendido que não devia haver comunicação a outros órgãos, nomeadamente órgãos de soberania, Presidência da República ou Parlamento”.
Na véspera, o chefe de Estado, em visita a Cabo Verde, tinha considerado que a investigação “não atinge minimamente o prestígio das Forças Armadas”. “Pelo contrário”, sustentou o Presidente da República em declarações à RTP: o facto de as Forças Armadas investigarem “casos isolados que possam ter ocorrido” e de terem tomado “essa iniciativa” “só as prestigia em termos internacionais”. Desta vez, Marcelo abriu uma exceção, uma vez que “normalmente, em território estrangeiro”, não faz comentários sobre a situação portuguesa. “Mas aqui é uma situação de projeção internacional, de prestígio das Forças Armadas, nomeadamente numa intervenção neste continente, o continente africano”, justificou.
“A ideia é levar as investigações o mais longe possível para apurar o que se passa, confirmar se são casos isolados, como à primeira vista há quem entenda que sejam”, disse ainda. Sendo casos isolados, estes “não afetam em termos de generalização e de prestígio das nossas Forças Armadas, que está incólume”. Um prestígio que o Presidente disse ser “exatamente o mesmo” que testemunhou em março de 2018, quando esteve na República Centro-Africana. Contudo, a denúncia é posterior à sua deslocação ao país, datando de dezembro de 2019.