Sociedade

Karl Burkart: “Para estabilizar o clima e a biodiversidade é preciso proteger 50% das terras do planeta”

Bem-vindo às Conversas da Casa Comum. Desde 23 de setembro, a Casa Comum da Humanidade (CCH), organização global com sede em Portugal, na Universidade do Porto, está a realizar uma campanha de divulgação internacional da sua iniciativa “Um Sistema Terrestre, um Património Comum, um Pacto Global”, em parceria coma a agência de notícias The Planetary Press

Amazónia em alerta vermelho. Indígenas da tribo Mura no meio do nada, numa zona de floresta vítima de desmatamento. 2019 foi o ano em que o abate de árvores na Amazónia atingiu números que podem causar danos irreversíveis na região
Ueslei Marcelino

A campanha conta com uma série de entrevistas feitas por esta agência, gravadas em podcast e transcritas em inglês, português e espanhol – as “Conversas da Casa Comum ONU75” – a personalidades de projeção internacional. As primeiras 14 entrevistas são acompanhadas por vídeos com animações sobre as propostas da CCH.

O Expresso publica todas as quartas-feiras uma entrevista e um vídeo associado enquanto durar a campanha (pode ver as quatro primeiras entrevistas e vídeos aqui, aqui, aqui e aqui). A CCH propõe o reconhecimento do Sistema Terrestre como Património Comum da Humanidade, para restaurar um clima estável, criar um novo modelo de governança para os recursos naturais comuns do planeta e promover um novo Pacto Global para o Ambiente junto da ONU, que acabe com o atual impasse nas negociações climáticas. Para concretizar este objetivo, a CCH está a organizar uma coligação global de conhecidos cientistas do Sistema Terrestre e da sustentabilidade, juristas, economistas, sociólogos, Estados soberanos, ONG, organizações internacionais, autoridades e comunidades locais, povos indígenas e universidades.

A Casa Comum da Humanidade tem como fundadores sete universidades portuguesas,a ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável, o Ministério do Ambiente e Ação Climática, as Câmaras Municipais do Porto e de Gaia e especialistas de todo o Mundo. E tem também uma série de parceiros além da The Planetary Press, como o – Instituto Internacional de Derecho y Medio Ambiente ((IIDMA, Madrid), a rede The Planetary Accounting Network, a Global Voice ou a Earth Trusteeship Initiative.

Hoje estamos acompanhados por Karl Burkart, cofundador e diretor executivo da organização não governamental One Earth. E ex-diretor de inovação, media e tecnologia da Rockefeller Philanthropy Advisors/Fundação Leonardo DiCaprio. Karl Burkart lidera os programas de ciência, tecnologia e media digitais da One Earth, um projeto em parceria com a Rockefeller Philanthropy que oferece apoio financeiro a instituições académicas e ONG que trabalham na ciência de ponta do clima e da energia, mapeamento da biodiversidade e agricultura sustentável (ouvir entrevista completa em inglês AQUI).

Quais são as principais atividades da One Earth?

Somos uma iniciativa filantrópica especialmente focada na interface da política científica para as convenções da ONU. E estamos a testar três modelos científicos principais que apoiamos com conhecidos cientistas de todo o Mundo. O primeiro é o modelo de transição energética do clima, que foi publicado no ano passado num livro muito denso de 500 páginas intitulado “Alcançar as metas do Acordo de Paris sobre o Clima”. Foi escrito por 17 cientistas líderes na energia climática e agora está a ser amplamente citado. O seu objetivo foi ver como podemos ficar abaixo do limite de 1,5 graus do aumento da temperatura global. O segundo modelo chama-se Global Safety Net, que acaba de ser publicado na revista científica “Science Advances”. Foi um esforço de dois anos e meio, uma análise espacial muito ampla - a primeira análise de escala global das terras biologicamente importantes. E um dos produtos deste trabalho é um conjunto de metas recomendadas, baseadas em áreas, para a próxima Convenção da Biodiversidade da ONU em 2021, que mostra os diferentes tipos de terra que podem contribuir para os serviços de ecossistema e biodiversidade em cada país. O terceiro modelo, que estamos agora a começar a desenvolver, em parceria com a Universidade de Minnesota (EUA) e o envolvimento de outros cientistas, é um modelo de segurança alimentar global, que contribuirá para observar como alimentaremos 10 mil milhões de pessoas de forma sustentável no planeta em meados deste século.

Acha que temos hoje a ciência e a tecnologia disponíveis para encontrarmos soluções que estabilizem o clima e mantenham o aquecimento global até 1,5 graus?

Sim, sem dúvida. E no modelo climático de transição energética que apoiamos, precisamos de passar globalmente dos cerca de 20% de energia renovável que temos hoje para cerca de 56% até 2030, com variações por região. Isto é relativamente simples. Sabemos exatamente como fazer. Usamos tecnologias que estão a ser testadas no terreno durante dez ou mais anos, que se desenvolvem rapidamente e tornam mais baratas a cada minuto. Portanto, não é a tecnologia que está a faltar para a transição energética, são os dólares. E no modelo climático temos o orçamento necessário para isso. A transição que acabei de mencionar custa cerca de 1,3 biliões de dólares por ano (1,1 biliões de euros). E isso é menos de um terço do que os governos gastam hoje a subsidiar os combustíveis fósseis, que estão a causar o aquecimento global. Então, por menos de um terço do que estamos a pagar para destruir o planeta, poderíamos fazer a transição energética com tecnologia, criar toneladas de empregos, e tudo isto ser ótimo para a economia. Ao mesmo tempo, aumentaria a segurança energética e reduziria os riscos para a saúde associados aos combustíveis fósseis e às mudanças climáticas. Ou seja, todos ficariam a ganhar. “Win-win” não será a expressão certa, mas antes “win-win-win-win-win”! É simplesmente uma questão de vontade política real de movimentar os dólares.

Acha que os esforços de recuperação económica da Covid-19 são uma oportunidade para abandonar o business as usual e apostar numa energia mais limpa e verde?

Sim, definitivamente. E não apenas no lado da energia, mas também no lado das soluções baseadas na Natureza. Estou a ver muitas iniciativas provenientes dos governos, especialmente dos governos da UE, instituição que tem sido uma grande líder neste processo. E os governos anunciaram várias medidas para uma recuperação económica verde. A Covid-19 teve dois impactos. O primeiro, positivo-negativo, foi a travagem da economia global. É como se eu estivesse a conduzir o meu carro e uma criança se atravessasse na minha frente, o que me obrigaria a travar a fundo. Acontece. Deste modo, todas as conversações internacionais que estavam a decorrer para a realização de Convenções sobre o Clima, a Biodiversidade ou uma grande cimeira da ONU, tiveram simplesmente de parar porque o Mundo parou. E os resultados estão a surgir agora. Veremos o que acontece, se é uma redução global de 9% a 17% das emissões de carbono neste ano. Teremos de esperar, obviamente, pelo post mortem desta paragem, mas achamos que provavelmente estará algures no meio daqueles valores, talvez 12% a 13% de redução nas emissões de gases de efeito estufa o que, na verdade, é mais do que precisávamos de fazer em termos de nos mantermos no limite de 1,5 graus de aquecimento global. Portanto, pisar o travão levou-nos na direção dos 1,5 graus. Agora a pergunta é: vamos simplesmente pisar no acelerador? Literalmente? É que também temos de tornar os nossos sistemas de transporte muito mais limpos. E muitas pessoas começaram a olhar para os pacotes de recuperação económica que poderiam ser direcionados para infraestruturas e energia sustentáveis e verdes, para soluções baseadas na Natureza.

E qual foi o segundo impacto da Covid-19?

Foi a consciencialização de como a Natureza é importante. A natureza sempre foi difícil de vender como um assunto sério porque, de alguma forma, as alterações climáticas soaram sempre como qualquer coisa mais técnica. Mas a verdade é que muitas pessoas sérias e com competência técnica começaram há 20 anos a trabalhar na Convenção do Clima da ONU. Ainda assim, por algum motivo, a Convenção da Biodiversidade ficou em segundo plano, noutro espaço. E havia organizações do tipo hippie a lutar pela Natureza, mas não as pessoas sérias com competência técnica. A Covid-19 fez muitas pessoas perceberem o que acontece quando começamos a “desfiar”, a descobrir, a infraestrutura natural que fornece os serviços de ecossistema de que todo o planeta precisa para existir. Quando perdemos essa visão, começamos a puxar os “fios” e a desencadear coisas como doenças zoonóticas, que passam dos animais para os seres humanos. Também sabemos que a perda da biodiversidade e a perda da Natureza aumentam as doenças transmitidas por insetos. Portanto, a Natureza é o nosso escudo que mantém a Humanidade no chamado Espaço de Operação Seguro. Assim, acho que também houve uma grande consciencialização, que foi oportuna porque tanto a Convenção da Biodiversidade como a Convenção do Clima foram adiadas, respetivamente, para a primavera e o outono do próximo ano, dando-nos tempo para respirar e pensar sobre estas questões, o que é positivo.

O Karl Burkart é um dos autores do Global Deal for Nature. Pode explicar melhor o que é este Pacto Global para a Natureza e quais as metas que devem ser definidas para combater a crise de extinção das espécies?

A ideia do Global Deal for Nature está num artigo científico que expõe os seus fundamentos teóricos e a metodologia do que se tornou a Global Safety Net (Rede de Segurança Global). Ou seja, podem ser considerados um par. O Global Deal for Nature, lançado no ano passado, foi basicamente uma análise muito inicial das terras que se mantêm no seu estado natural e seminatural e a importância destas terras para preservar a biodiversidade e resolver as mudanças climáticas. E esse artigo científico teve o apoio de mais de 150 grupos indígenas, porque um dos seus pontos principais é que quando procuramos as terras mais ricas em biodiversidade e que armazenam mais carbono, acabam por ser sempre as terras concedidas aos indígenas. E estas terras precisam de mais proteção, em particular na forma de posse, para evitar a sua ocupação ilegal (“grilagem”), a extração ilegal de madeira, etc. O Global Deal for Nature está dividido nas duas categorias de terras que mencionei: 30% a precisar urgentemente de biodiversidade e 20% para a chamada estabilização ou integridade do clima. Em todas essas terras, como descobrimos mais tarde na Global Safety Net, cerca de 40% das terras com elevada biodiversidade coincidem com territórios indígenas. E cerca de 30% das áreas de estabilização adicionais sobrepõem-se a terras indígenas. Portanto, estamos a ver como os direitos territoriais são realmente importantes para os povos indígenas. Em paralelo, houve muito entusiasmo em torno do lançamento do Global Deal for Nature. Foi lançada uma petição com cerca de três a quatro milhões assinaturas a apelar a uma meta de proteção dessas terras de 50%. A Global Safety Net que acabou de ser lançada criou um tipo de mapa do que estávamos a recomendar e do Global Deal for Nature. Neste mapa podemos observar o que se passa ao nível da ecorregião ou do país, e ter uma noção mais precisa de como as terras se dividem. Em suma, é assim que os dois instrumentos funcionam juntos.

A Planetary News publicou recentemente um artigo sobre um novo estudo científico que também apoia o que acabou de dizer - que proteger as terras dos povos indígenas é essencial para conter a perda de biodiversidade. Estes povos devem ser uma voz central na governança ambiental?

Claro que sim. Não podemos manter o aumento das temperaturas em 1,5 graus sem proteger as terras indígenas, porque há muito carbono armazenado nessas terras. E muitas delas estão ameaçadas, como vemos no Brasil e noutros países. Assim, é essencial incluir esta questão nas Convenções do Clima e da Biodiversidade da ONU. E em termos de governança, a participação dos povos indígenas seria interessante. Se tivermos uma teoria jurídica global em torno da ideia dos bens naturais comuns, as terras indígenas e todas as terras comunitárias devem ser consideradas. E sei que há um novo artigo científico que vai ser publicado em breve sobre a as terras mantidas de forma comunitária. Acreditamos que cerca de 50% das terras do planeta são mantidas desta forma e grande parte delas são terras indígenas. Mas há também uma grande parte gerida pelas chamadas comunidades locais ou comunidades tradicionais, que não se identificam necessariamente como tal ou pelos governos como “indígenas”, mas que gerem essas terras, em alguns casos, há centenas e mesmo milhares de anos. Portanto, se metade do planeta já é administrado por povos indígenas em comunidades locais, eles precisam de estar à mesa da governança quando pensamos nesta nova teoria jurídica em torno dos bens comuns, porque eles já estão realmente a praticar hoje o bem comum. E podemos dizer que o trabalho deles subsidia de alguma forma todos nós porque, sem as terras indígenas e os serviços de ecossistema que estas fornecem, provavelmente estaríamos já com um aquecimento global de dois ou três graus Celsius. Se olharmos para os vastos stocks de carbono nas suas terras, eles fazem um trabalho muito melhor conservando essas terras, e muito melhor do que os parques nacionais. E a nossa organização One Earth adoraria ajudar a facilitar esse processo. Há muitos juristas a praticar já a sua própria versão da teoria jurídica em torno de terras indígenas. E acho que temos muito a aprender com isso.

Explique melhor o que é o projeto da Global Safety Net e que objetivos espera alcançar.

São 11 análises globais diferentes que foram compiladas. Antes de trabalhar na tecnologia da ciência ambiental, a minha carreira profissional era de arquiteto. E sabemos que não se pode construir um edifício com significado sem um projeto. Fizemos então duas perguntas: O que precisamos de fazer para salvar a biosfera? Como pode isto ser representado num mapa? Assim, a Global Safety Net foi produzida pela ciência, mas foi também uma espécie de esboço grosseiro, como na arquitetura, de um plano para salvar a biosfera. E também surgiu para confirmar que consideramos importante para a biodiversidade e para a estabilização do clima cerca de 50% das terras do planeta, incluindo as áreas protegidas existentes. Portanto, estamos agora a arrancar com o projeto. E com a ciência não queremos ter uma agenda, mas apenas obter contribuições científicas de fora. As pessoas podem discordar de algumas das nossas descobertas ou técnicas de análise espacial usadas para as demostrar. Mas isso é bom, veja o que se passa na Convenção do Clima, onde existem literalmente milhares de cientistas a produzir centenas e centenas de modelos climáticos. Eles precisam de ser compilados e temos uma noção muito precisa das contribuições diferentes de todos esses cientistas. A segurança global é apenas a primeira. Esperávamos que houvesse dezenas de outras análises como esta que apresentassem as suas próprias prioridades. Podia ser a nível de país, região, ou a nível global. Mas queremos que isso aconteça para iniciarmos esses modelos globais, que esperamos venham a informar a Convenção do Clima da ONU nos próximos dez anos. E a determinada altura precisámos de divulgar a ciência e permitir que as pessoas reagissem a ela. Foi um processo difícil de revisão por pares, demorou muito tempo e estamos a usar algumas técnicas novas. É um começo, temos nos mapas uma resolução de um quilómetro, que é bastante grosseira. Não podemos usá-la para criar um plano para uma área de terra, mas podemos usá-la para gerar estatísticas bastante precisas a nível de cada país, que podem ser vistas no site através da aplicação Global Safety Net.app. E construímos tudo isto em parceria com a Google Earth, de modo a podermos mostrar os dados, que são diferentes em cada país. Assim, depende de cada país descobrir como dar prioridade à proteção das suas terras. Nós defendemos que a prioridade esteja concentrada nos 30% de terras que são identificadas como sendo de especial importância para a biodiversidade. Precisam de ser protegidas como antes, mas ciência é ciência e temos de a divulgar e fazer com que as pessoas reajam aos seus resultados.

Então acha que é possível alcançar estes esforços de conservação e restauração, abrangendo 50% das terras e oceanos e impulsionando soluções baseadas na Natureza, sem uma estrutura legal dentro da qual se possam desenvolver políticas globais?

A longevidade da presença da civilização humana na Terra é um ponto de interrogação. Neste momento estamos a caminho da extinção se atingirmos 1,5 graus de aumento da temperatura média global. Em muitas regiões da Terra já estamos nos 1,5 graus Celsius, como na Austrália ou na Califórnia. Ou seja, a Terra está a aquecer a taxas de crescimento diferentes. Particularmente preocupante é o aquecimento extraordinário que está a acontecer em ambos os polos, na Antártida e no Ártico. Temos uma arma apontada às nossas cabeças porque o aumento da temperatura média global já atinge 1,1 graus Celsius, e estamos a ver o colapso das maiores calotes de gelo e incêndios a acontecer a uma escala que não estava prevista. A posição da One Earth é de muito maior preocupação do que a atual posição de consenso sobre o limite crítico dos 1,5 graus. E há um estudo científico que mostra que a 1,5 graus Celsius o planeta perderia 8% da terra arável. Imagine seis milhões de pessoas a migrar para fora da Síria por causa da seca prolongada e da desertificação da terra arável. Imagine agora esse movimento multiplicado por 50 e como o Mundo poderia sustentar 50 crises de refugiados sírios a acontecer simultaneamente, combinadas com a subida do nível do mar, os incêndios e todas as outras coisas? O aumento de 1,5 graus na temperatura global é uma ameaça existencial diferente de tudo o que a Humanidade já enfrentou. O problema é que a ONU é muito jovem, tem “apenas” 75 anos, tem a mesma idade de um dos meus avós e dos avós de muita gente. A ONU foi a primeira tentativa de juntar os governos de todo o Mundo para debater acordos multilaterais. O problema é que a teoria jurídica não estava verdadeiramente presente. Mesmo quando temos convenções da ONU que são ratificadas, nenhum país faz muito ou quando faz só chega a cumprir metade dos seus compromissos. Portanto, precisamos de uma nova teoria jurídica em torno dos bens comuns globais. E este debate tem de começar agora, porque é muito difícil acreditar que vamos ficar abaixo dos 1,5 graus de aumento da temperatura global apenas com base nas políticas governamentais e no Acordo de Paris.

Como pode a Casa Comum da Humanidade contribuir para alcançar esses objetivos e ajudar a evitar essas ameaças existenciais?

A Casa Comum da Humanidade (CCH) tem o enquadramento certo e está a abordar o problema na escala que precisa de ser pensada. Como diz o ditado, não podemos resolver um problema irritante dentro dos limites desse problema. Temos de sair do problema. E acho que é isso que a CCH faz. Está a saltar para fora dos limites da formulação das políticas nacionais e até mesmo multilaterais e seguir para um nível superior. Agora não sei o que estaria em causa se houvesse um envolvimento dos governos neste processo. Mas sei que temos de começar as conversações e a CCH está a liderar este processo, o que é ótimo. A ideia de que os bens naturais comuns têm direitos é uma forma de atrair parceiros maiores, porque até agora são principalmente ONG progressistas, grupos indígenas e grupos de jovens que avançam com ações judiciais. É um ótimo precedente, mas temos de integrar os governos neste processo. E a teoria jurídica mais ampla em que a Casa Comum da Humanidade está a trabalhar vai ser importante para isso.

No Global Deal for Nature cita um artigo científico de 2017 chamado “Uma Abordagem Baseada na Ecorregião para Proteger Metade do Reino Terrestre”. E um conceito-chave deste artigo é que cada uma das 846 ecorregiões terrestres do Mundo precisa de um plano próprio partilhado por países cujas fronteiras se sobrepõem à sua extensão geopolítica. Como poderá a Casa Comum da Humanidade ajudar a concretizar estes planos?

Eu adoraria explorar isto com a Casa Comum da Humanidade, porque temos 846 ecorregiões e vamos lançar o processo em menos de três semanas. São muitas e diversificadas ecorregiões: terrestres, de água doce, marinhas ou costeiras. O artigo científico das ecorregiões representou uma viragem. O problema é que, muitas vezes, temos uma ecorregião muito interligada com outra. É o caso do Estado do Wyoming, nos EUA, onde as pastagens encontram as Montanhas Rochosas e deparamos com um emaranhado de pastagens e florestas de montanha. O que percebemos é que precisamos de um quadro global para o nosso próprio trabalho, que tem como foco o desenvolvimento da ciência para atingir os objetivos das convenções da ONU. Na verdade, precisamos de definir um conceito mais largo, as biorregiões, uma combinação de ecorregiões, o que vai acontecer dentro de poucas semanas. São 184 biorregiões, um número semelhante ao número de países do Mundo. Se a Natureza desenhou um mapa do Mundo, é assim que ele deve parecer, os 184 países da Natureza, agrupamentos de ecorregiões confinados por grandes estruturas geomórficas como bacias, cadeias de montanhas, planícies costeiras, etc. O mapa é um enquadramento biogeográfico inovador que permitirá a colaboração entre governos que se sobrepõem à biorregião. Por isso está a verificar-se uma adesão à ideia de ecorregiões, de blocos construtores, blocos de Lego, que não se dividem. E que incluem áreas costeiras adjacentes e de água doce, o que significa que não estamos a limitar o campo de estudo apenas à terra ao longo do rio, mas envolvemos também o rio. Tal como não estamos a limitar o estudo à planície costeira adjacente ao oceano, mas também as áreas costeiras. Porque quando pensamos em segurança alimentar, por exemplo, não podemos fazer isso. Temos de abordar esta questão a nível biorregional porque há pescadores a fornecer peixe e marisco, além da área de terra que pode fornecer cereais, vegetais, fruta ou gado criado em pastagens, enfim, todas estas fontes de alimento devem ser pensadas em conjunto e não separadamente.

Onde é possível encontrar este tipo de informação?

Para já estamos a colocar toda esta informação na Creative Commons, porque queremos que todos tenham acesso a ela. Mas no futuro estará também no site da One Earth, onde encontraremos o primeiro mapa esférico clicável para explorar tudo sobre a biorregião em que vivemos e sobre as ecorregiões que a compõem. E gostaríamos que esta informação pudesse ser adaptada de outras formas para ser igualmente usada por todos.

Entrevista feita por Kimberly White, jornalista e editora da agência norte-americana de notícias de ambiente e de desenvolvimento sustentável The Planetary Press