No último ano, em 2019, foram abandonados 22 recém-nascidos com menos de seis meses de gestação em Portugal. Que análise faz a esta situação?
É um número preocupante, que provavelmente também reflete a degradação de algumas classes sociais, acentuada com a questão da pandemia e da crise económica associada. Isso, provavelmente, deixa muitas mulheres em desespero, porque só pode ser desespero o que leva ao abandono dos filhos. Isso ou quadros psiquiátricos. Até podem ser as duas situações. Um contexto discriminatório em termos económicos e uma perturbação mental.
Que alterações psiquiátricas podem ser essas?
É sabido que há muitas mulheres que rejeitam a gravidez, que entram em processo de negação ou desenvolvem depressões pós-parto precoces. Estamos a falar de mulheres que não retêm vínculo com o recém-nascido, quer durante a fase de gestação, quer após o nascimento. A reação normal de cada um de nós quando vê um bebé é de encantamento e de uma rápida empatia. Se uma mãe consegue desvincular-se disso e não desenvolver o sentimento de proteção em relação ao filho, ao ponto de o abandonar, tem de ter razões muito fortes.
O próprio contexto de isolamento e de quarentena também pode ter impacto na estabilidade emocional de uma mãe?
Essa situação de isolamento leva a que, de facto, as pessoas não tenham uma rede social de apoio, nem que seja de um vizinho. Muitas mães, durante esta fase, podem ter feito gestações sem que ninguém tenha visto a barriga crescer. Imaginemos uma mulher que não queria engravidar e que o filho não foi planeado, ninguém se vai aperceber de que ela precisa de cuidados e ela também não os vai procurar. Claro que nada disso justifica o abandono de um recém-nascido, porque a nível de cuidados sociais, num contexto de parto hospitalar, se houver uma vontade expressa da mãe para que a criança seja dada para adoção, esse processo inicia-se. Pode não ser logo, até porque essas mulheres têm de ser acompanhadas depois por psicólogos e assistentes sociais do hospital. Se estamos a pensar em recém-nascidos abandonados, é porque as mães nem procuraram as instituições hospitalares para o parto.
Também se dá o caso de um abandono mais tardio?
Pode não ser imediato, logo no primeiro ou segundo dia de vida. E, nesses casos, as razões económicas parecem-me ser, provavelmente, as mais plausíveis e que podem levar ao abandono.
Podemos ter aqui um perfil reincidente de mães que acabam por abandonar os filhos?
Tanto podem ser muito jovens ou então mulheres mais velhas, em que não sabemos se é o primeiro filho delas ou se é o sétimo ou o oitavo. Estamos sempre a falar de pessoas que se encontram numa situação limite, criando à volta disso o anonimato, sem terem de assumir o abandono. Quando uma mãe abandona um filho é porque claramente se quer desvincular daquela criança.
Como é que estas mulheres devem ser encaradas socialmente? São culpadas ou vítimas? A fronteira é ténue?