Sociedade

Feridos, gás pimenta, bastonadas, carga policial: o despejo de um centro de apoio a carenciados em Lisboa

Contexto, parte 1: o Seara - Centro de Apoio Mútuo de Santa Bárbara, em Arroios, em Lisboa, foi impulsionado por um grupo de pessoas que ocupou um antigo infantário abandonado para apoiar sem-abrigo ou pessoas em situação de pobreza ou precariedade. Contexto, parte 2: o edifício foi vendido e seguranças contratados pelos novos proprietários entraram no espaço na madrugada deste segunda-feira para esvaziarem o local. A retirada de todos os ocupantes acabou mal

TIAGO PETINGA / Lusa

Cada vez que um grupo de polícias se deslocava em fila, perto dos prédios ocupados e bem vigiados, ouvia-se a música “The Imperial March”, do filme “Guerra das Estrelas”, saída dos tambores e das bocas dos cerca de 100 manifestantes. Estavam na rua a gritar pelo Seara, um centro de dia para os mais carenciados e que por esta altura também recebia 13 pessoas que por lá pernoitavam. Por volta das 5h30 desta segunda-feira, uma dezena de seguranças privados, contratados pelos novos donos dos imóveis, entraram pelas instalações e começaram a retirar as pessoas e os bens que por ali estavam.

“Alguns vinham fardados, outros vinham sem uniforme, alguns estavam armados”, diz ao Expresso um voluntário da associação. “Houve um deles que mostrou a arma de fogo. Houve intimidação física. Empurraram uma pessoa pelas escadas. Apesar disso houve três pessoas que ficaram lá dentro.” Ou seja, saíram dez pessoas que dormiam ali. A polícia chegou depois das 8h, chamada pelos voluntários.

Na rua ouvia-se “queremos habitação, caixote do lixo não”, “a cidade não se vende e a gente não se rende”, “Seara fica!”, num ajuntamento que não respeitava o recomendado distanciamento social em tempos de pandemia. Uma boa parte dos manifestantes era jovem. Apesar das provocações constantes aos agentes, dos gritos que pediam por dignidade e liberdade para os que estavam a ser expulsos, das acusações de que os agentes estavam a defender “o capital”, os ânimos estavam calmos. Estávamos na ressaca do momento mais tenso do dia, que ocorrera perto do fim da tarde, quando manifestantes bloquearam o acesso aos prédios à PSP e houve carga policial, com bastonadas e gás pimenta. De acordo com a agência Lusa, resultaram daí alguns feridos, entre os quais três agentes da polícia.

Antes desse confronto, entre 20 e 30 voluntários e apoiantes da associação entraram nas instalações e por lá ficaram várias horas. Quando surgiam nas janelas eram acarinhados com palavras de apoio e aplausos. Os punhos iam-se cerrando, como quem confirma estar a lutar por algo. “É um despejo ilegal”, ouvia-se entre a multidão.

“Não foi dada qualquer solução para estas pessoas”, lamenta o mesmo membro da associação, dizendo ainda que os membros da segurança privada tiveram acesso aos prédios, andando num "vaivém", ao contrário dos que acabavam de ser desalojados. O voluntário do Seara diz que os imóveis estão associados a vistos gold e que são vendidos em parcelas a cidadãos de Hong Kong e Rússia, por exemplo. O mesmo membro do centro de dia explica que nos três imóveis, comprados há ano e meio, funcionavam dois restaurantes e havia uma parte de habitação e outra em que estava um infantário.

Uma fonte da PSP disse à Lusa que as três pessoas em causa, no interior dos imóveis, podiam ficar esta noite naquele centro de apoio, garantindo que o acesso ao edifício ficaria "vedado a outros". Esta versão não seria tão sólida quanto os tijolos que seriam utilizados para emparedar os prédios.

“Eles vão sair”, sussurra um manifestante na linha da frente, ao telefone com alguém que está lá dentro. “Tens de perceber que vão ser detidos e que deve haver processos”, lembra para alguém lá dentro. Mais tarde, como um segredo mal guardado, os que estavam à janela encheram os pulmões e avisaram: “Vamos sair pacificamente! As nossas propostas não foram aceites pela polícia”. Voltavam os gritos, os batuques e as músicas: “A nossa luta é todo o dia, as nossas casas não são mercadoria!”.

E lá saíram, a conta-gotas, num corredor feito pela polícia de intervenção, os cerca de 25 apoiantes daquela causa que entraram naquelas instalações, recentemente transformadas num centro de dia para pessoas em situação precária tratarem de alguns assuntos, tomar banho, carregar o telefone e, levando a marmita, comer. A cada saída, um aplauso e gritos de vitória. Foram todos identificados e ninguém foi detido.

O aparato policial, com alguns dos agentes bem armados e com a cara tapada, provocava a ira a alguns manifestantes. “Filhos da puta! Estão ao serviço de quem?”, ouviu-se uma e outra vez. A paz podre quase tombou para o lado errado quando uma jovem reparou que um agente não tinha o nome identificado e começou a gritar para ele, enquanto gentilmente ia limpando o pinguinho do nariz com um lenço vermelho. Avançou, simulou um toque na viseira do agente e foi avisada com um dedo no ar. Houve alguns empurrões. Foi o rastilho para acender aqueles que a rodeavam. Aquele momento tenso durou alguns minutos e acabaria por serenar como uma vela que apaga de velhice.

“A polícia nem expulsa as três pessoas que lá estão dentro, nem os seguranças”, intriga-se o membro da associação em conversa com o Expresso. “O ideal era conseguir alguma solução para as pessoas que ainda estão lá dentro e para as pessoas que foram expulsas. Vamos ter de resolver no campo mais pessoal, com entreajuda entre os voluntários, mas é incrível que seja esta a forma de resolver estas situações. Teria sido muito fácil repor a ordem e lei se tivessem expulsado os seguranças que estavam ilegalmente no prédio e tivessem permitido às pessoas que lá estavam a pernoitar voltarem para dentro. Esperarmos o decurso judicial do processo. Não foi essa a opção que tomaram, ficaram do lado dos seguranças."

Perto da meia-noite ficou a saber-se que, afinal, as três pessoas que tinham permissão para pernoitar naquele espaço preferiram sair pois teriam de ali ficar sob a vigilância de oito seguranças. Foi isto que contou à agência Lusa Bernardo Valares, um dos voluntários do centro. "Sentiram-se intimidadas," explicou Valares, que acusa "todas as instituições" de terem falhado com os desalojados.

A seguir, o edifício foi emparedado (fechado) com tijolos, uma informação que a PSP ainda não confirmou à Lusa, garantindo que haverá um comunicado nas próximas horas.