Em 2003, Lisa Graasma recebeu um telefonema da mãe. As notícias não eram boas. Susan tinha feito uma biopsia e o resultado revelava que tinha cancro, melanoma. “Oh filha, aquilo está mal”, disse-lhe a mãe que, logo de seguida, anunciou que não queria ser tratada.
“Eu e a minha irmã obviamente não percebemos a decisão, mas aceitámos. Com um cancro e sem tratamento, já sabíamos o que ia acontecer. Naquela altura ela já estava a tomar a decisão”, recorda a filha, nascida na Holanda mas a viver em Portugal desde os 23 anos, há quase três décadas.
Susan Philipa Graasma-Joyce nasceu na Austrália, onde voltava todos os anos para passar três meses, “mesmo quando estava doente”. Mudou-se para a Holanda onde casou e teve duas filhas. Foi lá, com 48 anos, que ficou viúva. E durante o internamento do marido já dizia à filha que não concordava com a forma como o tratavam no hospital.
Com o tempo, Susan foi ficando mais doente e no último verão começou a tomar morfina. “Com morfina consegues viver”, diz, mas põe aspas com as mãos na palavra “viver”. “Consegues andar, consegues fazer as tuas coisas, mas entre agosto e dezembro ela piorou.” No final do ano toda a família rumou à Holanda. "Já não conseguia ler o jornal. Dizia-me: ‘Filha, anda cá ver, já não consigo ler’. E ela adorava ler”, recorda. “Se calhar é estranho dizer isto, mas eles sabem. Ela já sabia que ia morrer, porque durante o Natal já despediu da minha filha e do meu marido.”
Pouco depois, quando já estava em Portugal, o telefone de Lisa voltou a tocar. “Disse-me: ‘filha, vou para o ‘hospice’. Fui para casa e chorei, chorei, chorei. Sabia que seria a sua última morada. A nossa mãe está a dizer ‘vou-me embora’. Para mim isto é mais chocante do que pensar na eutanásia.”
Na Holanda, um ‘hospice’ é o equivalente a uma unidade de cuidados paliativos, onde os pacientes recebem cuidados em permanência por uma equipa de enfermeiros. Segundo um estudo da BMC Health Services Research, 10% das mortes não súbitas no país ocorrem neste tipo de instituições.
“Era uma mulher extremamente forte, independente e não queria ser um fardo para ninguém. Claro que ela não era, nem para mim, nem para a minha irmã".
O terceiro telefonema: “Se ainda queres falar com a tua mãe, tens de vir agora”
Quando a irmã ligou, Lisa largou tudo e foi para a Holanda. A situação da mãe tinha-se degradado, mal conseguia falar. “Eu ia ao ‘hospice’ todos os dias e claro, aquilo vai piorando, piorando. Um dia, disse-me: ‘Filha, eu já não quero. Não quero mais’”, recorda Lisa. “Eu e a minha irmã respeitamos e amamos a minha mãe. Quem sou eu para dizer ‘tu não podes fazer isso’? Portanto perguntei-lhe se tinha a certeza”
A resposta afirmativa deu o sinal de partida para o processo. Primeiro, Susan falou com a médica de família. Depois com um médico do ‘hospice’ e quando teve de escolher a hora para a partida apenas pediu que fosse "o mais rápido possível”. Era sexta-feira, mas por regras da instituição o procedimento só podia acontecer na segunda.
“Foi horrível. Agora estou bem, falo bem sobre o assunto, mas obviamente deitas-te e sabes que segunda-feira vais perder a pessoa que é tudo para ti.” Lisa emociona-se. Não chora, mas os olhos brilham com a intensidade das lágrimas a querer aparecer. “Queria ser forte para a minha mãe e a minha irmã também. Ia lá, até comprava flores… é estranho como as pessoas reagem.”
Quando segunda-feira chegou, Susan falou com as filhas uma a uma. Lisa e a irmã deram-lhe um último cigarro e o derradeiro golo de brandy, a bebida de eleição desde jovem. Quando chegou o meio dia, a hora marcada, não saíram do lado dela.
“Quando lhe deram a injeção ficou assim", e Lisa baixa a cabeça a imitar o gesto da mãe. "Depois o médico disse 'vamos dar outra' e ela levantou-se e disse ‘Bye darlings’ e lá foi ela. Nunca me esquecerei disso. Mas depois… aí é diferente”, afirma. “A eutanásia não mete medo. A única coisa são as saudades e isso os portugueses sabem o que é. Saudades. É com isso que fico para o resto da minha vida.”
"O tema da eutanásia é delicado, mas é liberdade”
Susan escolheu morrer em 2010. Desde então, Lisa continua a morar em Portugal e hoje acompanha o debate em torno da despenalização da prática no país. Com a sabedoria de quem a viveu de perto, defende abertamente a despenalização.
“Não quer dizer ‘vamos matar todos os velhinhos’. Não é disso que estamos a falar. A melhor amiga da minha mãe teve cancro do pulmão e lutou até ao fim, morreu no hospital. Podia ter feito a eutanásia, mas não fez. Não quer dizer que toda a gente o vá fazer. Tens de ser uma pessoa muito especial, e quem conhecia a minha mãe sabia que ela tinha o perfil de fazer isso.”
Lisa é contra o referendo. Acha que há muita gente em Portugal que quer a despenalização - a sondagem mais recente põe 50,5% dos portugueses a favor – e que com o referendo as crenças o podem impedir.
“Temos de respeitar as decisões dos outros”, reforça. “As pessoas às vezes dizem 'não vou querer fazer isso’. Não sabem, porque não sabem o que podem vir a sofrer. O tema da eutanásia é delicado, mas é liberdade.”