O vídeo a reivindicar o ataque à sede da produtora do programa de humor Porta dos Fundos, no Rio de Janeiro, foi retirado do YouTube por violar a política relativa a conteúdo violento ou explícito, mas nem isso acalmou o debate em torno do movimento integralista no Brasil. De cara tapada, três homens que se dizem parte do movimento apareciam vestidos com uma bandeira com a letra grega sigma e vestidos com camisas verdes, dois símbolos do integralismo brasileiro.
Não é a primeira vez que o “Comando de Insurgência Popular Nacionalista, da Grande Família Integralista Brasileira”, o faz: há exatamente um ano, o mesmo grupo roubou e queimou três bandeiras antifascistas da UniRio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) como resposta ao grupo de combate e denúncia do discurso de ódio daquela universidade. Em ambos os casos usou as redes sociais para se dizer autor dos ataques e em ambos os casos viu a principal liderança do movimento, a Frente Integralista Brasileira (FIB), distanciar-se dele. Não é ainda claro onde está o intruso. Se é a FIB a usar a estratégia de se distanciar para fugir a eventuais investigações ou se é o grupo dos ataques apenas um conjunto de “lobos solitários”, sem qualquer articulação ou ligação às lideranças. Mas o debate está lançado: quem são, de onde apareceram e para onde querem ir os integralistas?
Por mais que os militantes o neguem, o movimento é, para os investigadores, “o fascismo brasileiro”. Leandro Pereira Gonçalves, professor do departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora, lembra ao Expresso que o termo — como outros da mesma família — tem sido bastas vezes mal empregue: “nas redes sociais a intolerância virou fascismo, mas ela não é. Academicamente, fascismo é outra coisa”. E não deve ser confundida com a governação de Jair Bolsonaro, eleito presidente do Brasil há pouco mais de um ano. Nessa altura, os integralistas deram um “apoio crítico” ao então candidato: continuam a concordar com o conservadorismo nos costumes, com o anticomunismo, mas discordam das boas relações com Israel e Estados Unidos e sobretudo da política económica liberal proposta pelo ministro das Finanças, Paulo Guedes. Os integralistas são ferozmente nacionalistas, na política e na economia. Não acreditam na democracia liberal e propõem uma “democracia orgânica”, em que as decisões são tomadas por grupos sociais aos quais cada cidadão deve pertencer (os sindicatos, por exemplo). Defendem a doutrina social da Igreja, sobretudo católica. “Não é o Deus pentecostal de Bolsonaro, tal como a família conservadora tradicional não é a mesma”, diz Pereira Gonçalves.
As semelhanças, porém, existem e vão além da “ameaça do papão comunista”. Materializaram-se há um mês quando Bolsonaro fundou um novo partido, o Aliança pelo Brasil, e se apropriou do slogan integralista, que se ouve agora a várias vozes - “Deus, Pátria, Família”. Fundado no catolicismo, o integralismo brasileiro dita valores morais e apresenta o Brasil como uma família. A letra sigma, que significa somatório, representa essa ideia, tal como “Anauê”, a saudação de origem tupi guarani, que significa “você é meu irmão”.
“Os integralistas estão aproveitando o ambiente político conservador para chamar a atenção para as suas bandeiras”, comenta Pereira Gonçalves. E a principal é o fascismo tradicional à italiana. O fundador Plínio Salgado, “pai, chefe, líder máximo, único e supremo” do movimento, esteve em Itália em 1930, onde conheceu Benito Mussolini e de onde “saiu encantado”. Nessa altura já a personalidade política do escritor e jornalista brasileiro estava desenhada (tinha 35 anos), mas é pouco depois dessa visita que nasce a Ação Integralista Brasileira (AIB), aquela que é até hoje a referência de todos os neointegralistas — aqueles que se juntaram ao movimento após a morte de Plínio, em 1975.
Pedro Doria, prestes a lançar um livro sobre a história do integralismo, aponta no Facebook: “A extrema direita brasileira dos anos 1930 não era como a de hoje num aspeto - Plínio leu poesias suas durante a Semana de Arte Moderna de 1922. Barroso [Gustavo Barroso, outros dos fundadores] já era membro da Academia Brasileira de Letras quando a AIB nasceu. Reale [Miguel Reale, outro ainda] foi talvez o maior jurista brasileiro do século 20. Eram intelectuais. De extrema-direita mas homens que liam, que escreviam e refletiam.” Atraíam outras figuras do universo cultural brasileiro, como Glauber Rocha ou Vinícius de Moraes, ambos com passagem pelo integralismo. “A atual extrema-direita”, completa Doria, “se orgulha em menosprezar a elite intelectual”.
As diferenças entre os velhos e os novos integralistas não acabam por aí. Enquanto os primeiros “acreditavam que o Brasil precisava de autoridade” — “não fingiam ser democratas” —, os novos “fingem”. No vídeo entretanto apagado do Youtube, a bandeira do Brasil imperial chama a atenção para uma terceira diferença. “O fascismo é revolucionário (...), quer uma mudança radical no Estado, no país”, acrescenta Pedro Doria. Já os novos movimentos misturam a ideia de revolução com a de reação. Querem “um retorno ao Brasil agrário monárquico” e distância de um “país industrial e urbano”.
Portugal no coração
Nem Plínio Salgado passou despercebido em Portugal nem o país foi indiferente para a vida do fundador do integralismo brasileiro. Obrigado a exilar-se do Estado Novo no Brasil (e da ditadura de Getúlio Vargas, que ilegalizou os partidos), Plínio chegou a Portugal em 1939, nove anos depois do encontro com Mussolini. Assentou perfeitamente no Estado Novo português.
“Com uma proposta nacionalista e basicamente católica, Salazar inspirou Plínio” ao longo dos sete anos em que este viveu em Lisboa, conta Leandro Pereira Gonçalves, via WhatsApp. Nessa altura, o brasileiro aproximou-se da elite portuguesa, sobretudo a que estava ligada ao integralismo lusitano, frequentando os mesmos espaços que figuras como Alberto Monsaraz, Hipólito Raposo, Pequito Rebelo ou o Cardeal Cerejeira, Patriarca de Lisboa, e amigo pessoal de Oliveira Salazar. Com o ditador português, que admirava, Plínio só contactará de forma mais profunda em 1962, numa das inúmeras visitas que fará a Portugal, depois de regressar definitivamente ao Brasil e fundar o Partido de Representação Popular (PRP).
“Portugal foi destaque na organização doutrinária de Plínio” durante o exílio, “momento que utilizou para reordenar o seu pensamento, ações e articulações políticas, tendo a vertente do espiritualismo católico como força central”, explica Pereira Gonçalves. O investigador esteve em Portugal a estudar a figura do fundador do movimento, o que deu origem ao livro “Plínio Salgado: um católico integralista entre Portugal e o Brasil (1895-1975)”, editado em Portugal pela Imprensa de Ciências Sociais. Também em Lisboa, Plínio Salgado “encontrou o espaço para a rearticulação da proposta política” e passou a “ser um defensor supremo da política de Oliveira Salazar, imagem que seguiu até o fim da vida”. Tornou-se também uma figura admirada pelo Estado Novo português, sobretudo a partir de 1943, data em que por cá foi publicado o livro “Vida de Jesus”. Desdobrou-se em entrevistas na imprensa, controlada pelo regime, e apresentou a obra do Algarve a Trás-os-Montes, a ponto de a mesma chegar à casa “de qualquer família católica portuguesa que se prezasse”. Pouco tempo depois, “Vida de Jesus” tornar-se-ia mesmo leitura obrigatória nas escolas do país.
Do encontro de 1962 com Salazar, Plínio Salgado deixou registadas algumas palavras ao “Diário da Manhã”, jornal oficial do Estado Novo. “Quando se está com o prof. Oliveira Salazar aprende-se sempre muito. Durante o nosso encontro abordámos diversos problemas, tanto nacionais como internacionais, e examinámos a expansão do Mundo com as correntes que hoje são a melhor lembrança da clarividência e do equilíbrio de Salazar, que considero um dos maiores estadistas do nosso tempo.”
Falar deles é dar-lhes força?
O debate sobre a atenção dada a grupos radicais, especialmente quando são ainda pequenos, não é novo. Existe entre académicos e jornalistas. Palavra a um dos primeiros. “Acho que é importante ter cautela, mas não podemos silenciar” estes movimentos, acredita Pereira Gonçalves. Tal como um colega da mesma universidade de Juiz de Fora, Odilon Caldeira Neto, o professor tem dado nos últimos dias diversas entrevistas sobre o integralismo, como já havia feito há cerca de um mês quando um grupo de dezenas de pessoas marchou em São Paulo com as insígnias do movimento. “O que me deixa preocupado é quando os investigadores têm o mesmo espaço, ou às vezes até menos, do que os militantes.” Por uma questão “de likes, de engajamento”, o risco é real. E porque a atenção para estas questões é também recente. “Você não tem ideia da quantidade de vezes que já me perguntaram se sou integralista só porque estudo a doutrina. É um problema no Brasil, que não soube olhar o seu passado”, comenta o professor.
Entre os estudiosos do integralismo e do neointegralismo há a crença de que a margem de crescimento do grupo é, apesar de tudo, curta. Atualmente trata-se de um conjunto de “grupelhos”, como lhe chamam, disperso, fragmentado, com causas nem sempre coincidentes. “Há uma miscelânea muito grande, uns mais radicais, outros mais conservadores”, reforça Leandro Pereira Gonçalves.
É provável que muitos integralistas brasileiros se tenham sentido ofendidos com o sketch de Natal da Porta dos Fundos, sendo também certo que “muitos não concordam com o ataque” à sede da produtora. Permanecem incertas as ligações do grupo que reivindicou esse ataque a outros da mesma índole. Tem agora a palavra a Polícia Militar do Rio de Janeiro.