Mohammed pediu uma caneta e papel. Nesse mesmo dia voltou a surgir com cinco folhas rasgadas e escritas a letra muito miudinha. No topo lia-se “História de um refugiado”. Parecia o título de um livro, o arranque de um conto que ainda ninguém contou. E quando a dor da memória tornava as palavras insuportáveis de escrever, Mohammed socorria-se de gráficos ou listas para explicar o que não conseguia escrever. Fazia-o assim:
- Violaram a minha irmã;
- Houve um incêndio e os soldados vieram.
Mohammed é do Darfur e é uma das 60 pessoas resgatadas pelo Ocean Viking, o navio operado pelos Médicos Sem Fronteiras e pela SOS Méditerranée. Esteve cinco dias no mar à espera que um porto europeu lhe desse lugar depois de ter estado tantas outras horas no Mediterrâneo numa embarcação sobrelotada, depois de por sabe-se lá quanto tempo ter vivido no centro de detenção de Tajoura, perto de Tripoli, na Líbia - o mesmo centro que em julho foi bombardeado com centenas de pessoas no interior, morreram 53.
Só esta quarta-feira foi atribuído um porto de desembarque às pessoas resgatadas pelo navio das ONG. Estavam há cinco dias sem saber onde atracar - como aliás continua a ser habitual entre os navios operados por ONG no centro do Mediterrâneo. “O dia do desembarque é sempre calmo, silencioso. Acho que as pessoas têm medo do desconhecido. Lembro-me de um homem em particular que esteve o tempo todo sossegado mas quando chegámos ao local de desembarque veio ter comigo, abraçou-me e disse: ‘foste o único que tomou conta de mim’”, recorda Kira, um dos tradutores a bordo. “Por que motivo as pessoas arriscam a sua vida? Isto não é uma aventura. Não têm mais nada na vida, mais nada a perder. E, obviamente, há demasiadas pessoas no mundo a não se preocuparem com isso.”
Às 60 pessoas resgatadas pelo Ocean Viking podemos somar as 61 resgatadas pelo Alan Kurdi, um outro navio de salvamento civil, mas este da responsabilidade de uma organização alemã (que chegou a ter a bordo 81 pessoas, mas que parte acabaram por ser retiradas para terra). Ambos desembarcaram em Itália: o Ocean Viking em Pozzallo, no sul da Sicília, o Alan Kurdi em Messina, no norte da ilha italiana.
Mas voltemos a Mohammed. É um rapaz pequeno, descreve Hannah Wallace Bowman, responsável pela comunicação e que está a bordo do Ocean Viking. Usa um casaco de uma farda escolar que é demasiado grande. O seu corpo é magro. “Contou-me que tem medo de fechar os olhos às noite”, refere Hannah.
Também Jaden, que tem 26 anos, foi resgatado. Aquele que se tornou o seu melhor amigo, que conheceu na Líbia - os sofrimentos e dores da vida tendem a aproximar brutalmente as pessoas que os vivem juntas -, morreu. Jaden veio numa embarcação que teve a sorte de ser resgatada, mas a do amigo dele tem um história diferente. “Foi ao fundo e quando voltou à superfície não conseguiram encontrá-lo. Ele não sabia nadar. Ele era como eu: o único filho dos seus pais. Estamos a morrer no mar.”
Há ainda Abdul, que é barbeiro, conta Hannah. “É gentil e de fala calma. Nada o deixa mais feliz que cortar cabelos.” Já não reconhece o seu rosto, a barba cresceu durante o cativeiro de mais de um ano na Líbia. Um homem que cuida de barba alheia tem de olhar pela sua: “Amanhã vou barbear-me”.
Hannah também costumava encontrar Grace à noite no convés, quando já todos dormiam. Olhava para as estrelas e pedia que a beliscassem porque não acreditava estar viva e a salvo. “Fiz o que me pediu, rimos mas acho que não ficou convencida de que era verdade.” Grace, o marido e os quatro filhos já haviam tentado duas vezes atravessar o Mediterrâneo. Foram intercetados pela guarda costeira e levados de volta à Líbia, onde foram presos e onde uma das filhas ficou gravemente doente. Estavam decididos a fazer desta a última tentativa. Caso contrário esperariam apenas por morrer e “pelo menos assim tudo acabaria”.
Pessoas colapsam inconscientes
Na última noite o tempo piorou. Aproximava-se uma tempestade. O navio Alan Kurdi procurou abrigo no estreito de Messina, ao largo da costa siciliana. Estavam há seis dias à espera e só esta quarta-feira terminou a incerteza. Eram 09h (menos uma hora em Portugal continental) quando desembarcaram.
“Durante meses os próprios ministros vangloriaram-se pelo pacto de Malta [sobre as migrações], que deveria garantir uma rápida distribuição e desembarque. O ministro do Interior alemão disse na segunda-feira que estava muito satisfeito com o progresso até agora mas nós não entendemos isso. As pessoas não são uma moeda de troca”, defende Julian Pahlke, porta-voz da Sea Eye, em comunicado.
Há dois dias, duas pessoas caíram inconscientes no navio. Precisaram de assistência imediata. A fragilidade da saúde física e mental obrigou à retirada de pessoas. Por três vezes as autoridades italiana aproximaram-se do Alan Kurdi e levaram gente que já não aguentava mais a dureza do mar. No total, 23 pessoas foram levadas para terra.
Diz a lei marítima internacional que quando alguém está em perigo no mar - e todos eles estão - deve ser atribuído como lugar de desembarque o porto seguro mais próximo e o mais rapidamente possível. E isso não está a acontecer, garantem as ONG, e a história recente do Mediterrâneo prova isso mesmo: desde o verão de 2018 que o desembarque tem sido dificultado, países como Itália e Malta, que serviam quase sempre como porto, passaram a recusar a entrada dos navios durante dias até existir uma solução concertada entre Estados-membros (Portugal tem estado muitas vezes envolvido) e, enquanto isso, as pessoas continuam à espera.
Sim, continua a acontecer. Todas as semanas navios de organizações não governamentais ficam à espera de lugar para atracar. “Estamos a esgotar os superlativos para esta ignorância.”