Se não por outro motivo, a entrada em cena de um grupo anónimo, “revoltado” e “zangado”, já tornará a manifestação de polícias desta quinta-feira diferente de todas as outras. O Movimento Zero faz seis meses no dia em que os sindicatos da PSP e da GNR querem fazer “a maior manifestação de polícias de sempre” — que, como adiantou o Expresso, contará com o apoio de sete dos nove partidos com assento parlamentar. E já na manhã desta quinta-feira, centenas de polícias saíram em autocarros da região do Grande Porto rumo à manifestação desta tarde. Empunham bandeiras e falam em sentimentos de revolta, não muito diferentes daqueles que o autodenominado M0 tem invocado.
Apesar da juventude, o movimento já confirmou a participação na manifestação, mas esta está longe de ser a primeira aparição. O grupo constituído por milhares agentes da PSP e militares da GNR, que ninguém sabe quem lidera, tem ido das ações simbólicas à incitação à greve, alternando silêncio com palavras violentas. Ou desprezo. Nas comemorações dos 152 anos da PSP, a 12 de julho, centenas de agentes vestidos de branco viraram as costas à cerimónia que decorria em frente, na Praça do Império, em Belém, enquanto discursava o diretor nacional da PSP, Luís Farinha. À chegada ao palanque do ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, os polícias foram abandonando as comemorações, presididas e presenciadas pelo primeiro-ministro, António Costa. Foi a primeira vez que testaram o método do silêncio.
Uma semana depois, um grupo vestido com as mesmas t-shirts brancas, com as insígnias do M0, juntava-se à porta do Hospital de Braga para protestar contra as condições de trabalho dos agentes, depois de uma alegada tentativa de suicídio de um comissário da PSP da cidade, ali internado. Na concentração estava Peixoto Rodrigues, presidente do Sindicato Unificado da PSP, que acusou o Estado de contribuir para a degradação da saúde mental dos polícias. Peixoto Rodrigues admitiu ao Expresso fazer parte do grupo da rede social Telegram onde o M0 se organiza, mas garante desconhecer quem o criou e coordena. O grupo é fechado e só se pode entrar por convite.
Três dias antes da ação em Braga, o M0 era aplaudido numa iniciativa em frente à PSP de Massamá, organizada por um grupo de cidadãos daquela localidade do concelho de Sintra. Na página do movimento, os responsáveis congratulavam-se pela adesão das dezenas de moradores. O mesmo aconteceria no Algarve, a 18 de setembro, numa ação dessa vez organizada pelo M0 e que juntou perto de uma centena de apoiantes em frente ao Comando Territorial de Faro.
Mas nem todas as ações são feitas de palmas e silêncio. Pelo contrário, algumas são mesmo só palavras: em agosto, o M0 ameaçou com uma greve geral dos polícias, o que seria ilegal e não se concretizou, e a meio desse mês apelou a que os agentes metessem baixa e paralisassem alguns serviços. Foi o que aconteceu, por exemplo, nas divisões da PSP de Seixal e Almada.
O modus operandi inclui ainda ações aparentemente invisíveis, mas que aproveitam o fator amplificador das redes sociais para conseguir repercussão. Foi o caso da ida a um restaurante na zona do Parque das Nações em Lisboa, no passado mês de outubro. Depois de ver o espaço vandalizado, o proprietário do restaurante queixou-se para as câmaras de televisão de falta de apoio do Estado. No dia seguinte, o M0 publicava uma série de fotografias com esse mesmo proprietário, que na última aparecia sorridente e de pulseira M0 na mão.
Sem rosto, mas com “adesão cada vez maior”
Parco em declarações públicas, o movimento aposta no ruído na internet, em plataformas como o Facebook. Por lá, tem mais de 54 mil seguidores. No grupo do Telegram é mais difícil saber o número exato, mas serão já mais de 15 mil os profissionais da PSP e da GNR arregimentados. A implantação estende-se aos sindicatos, que, evitando colar-se demasiado ao M0, também não o renegam. O maior de todos, a Associação Sindical de Profissionais de Polícia (ASPP), diz entender a posição dos agentes, tal como o Sindicato Unificado da PSP que, na voz do presidente Peixoto Rodrigues, afirma que “a adesão é cada vez maior”. Ainda assim, o líder da Associação dos Profissionais da GNR (APG), César Nogueira, vai deixando alertas para os riscos de um movimento sem rosto. É dessa forma que o M0 se apresenta: “Não tem rosto, não tem vozes, não tem postos, nem categorias”. E é aí que reside a maior incógnita da manifestação: as poucas ações feitas até agora, como as acima citadas, não permitem perceber padrões. O M0, porém, tem tentado dar a garantia de que atuará contra qualquer tipo de violência.
O risco de que isso aconteça está, mesmo assim, na cabeça das autoridades. A manifestação está a merecer cuidado especial por parte das forças de segurança, até por causa das dúvidas em relação ao M0. O “Diário de Notícias” cita fonte policial para dizer que haverá “tolerância zero” em relação a qualquer desacato e que está montado “um dispositivo que só tem paralelo com o das manifestações do período da troika e dos protestos das forças de segurança de 2014 e 2017”. O nível de risco aumentou a partir do momento em que o M0 se juntou ao protesto.
Apesar dos alertas, Marcelo Rebelo de Sousa vê o copo meio cheio: “Eu não vejo razão nenhuma para estar preocupado, se houver a vontade, que parece haver, de contacto, de diálogo entre o Governo, de um lado, e as entidades associativas, sobre o estatuto das forças de segurança, que se deteriorou de facto, ao longo dos últimos dez anos”. O Presidente da República considera que “é público e notório que o Governo tem vindo nos últimos dias a ter contactos com associações representativas no domínio das forças de segurança”.
Cabrita é alvo preferencial
Se há um padrão a ser percebido na atuação do M0 é o ataque ao ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita. Não foram só as costas voltadas para ele, e a marcha ao ritmo do seu discurso: qualquer breve viagem pelas palavras do movimento esbarra com frequência em pedidos de demissão e na recuperação de frases do ministro. O exemplo mais claro é o do caso em Vale de Chícharos, conhecido por Bairro da Jamaica. Em janeiro, a polícia foi chamada ao local e terá, segundo a descrição dos moradores, abusado da força. Depois de uma manifestação contra a violência policial em que também se registaram desacatos, Eduardo Cabrita falou na segurança como “um desafio colectivo” e até elogiou o trabalho dos polícias, mas disse a frase “Jamaica somos todos nós”, que o M0 não esquece.
Na altura, o movimento ainda nem existia. Começou a germinar a 22 de maio de 2018, ainda que ninguém o soubesse. Foi esse o primeiro dos mais de 30 dias de sessões no Tribunal de Sintra, para julgar o chamado “caso Cova da Moura”. Dele resultou a condenação de oito agentes da PSP, acusados de crimes como sequestro, ofensas à integridade física agravada e denúncia caluniosa contra seis jovens do bairro. No último dia do julgamento, como em todos os outros, a sala esteve cheia de apoiantes dos polícias: foi a 20 de maio deste ano. No dia seguinte, há exatamente seis meses, nascia o Movimento Zero, com a promessa de “Zero Detenções” e “Zero Atuações”, uma forma de “proatividade nula” que se propunha a não intervir em bairros considerados problemáticos ou a passar multas de trânsito.
As exigências do M0 eram genericamente as mesmas que agora apresenta para a manifestação: a criação de um subsídio de risco para os polícias, o estatuto de profissão de desgaste rápido, a melhoria dos salários, a devolução de suplementos retirados durante a crise, a fiscalização da saúde e da segurança no trabalho — a questão mental é sempre uma das mais apontadas pelo M0 — e a pré-aposentação aos 55 anos ou 36 de serviço.
Ao Expresso, os administradores da página do movimento disseram não abdicar de nenhuma das reivindicações. “Não temos que negociar, só têm que dar o que é nosso por direito, não estamos para negociar como fazem os sindicatos, nós só queremos o que reivindicamos.”