A viagem de carro de Lucknow, capital do estado de Uttar Pradesh, para a ensurdecedora cidade de Shahjahanpur demora cerca de quatro horas. É difícil andar pelas ruas estreitas, cheias de bicicletas e vendedores de rua. Ouve-se constantemente um concerto de buzinas. Longe das ruas principais, há uma praça rodeada por pequenas casas. Entre elas, uma casa de dois quartos está escondida dos transeuntes por uma parede verde de três metros e umas portas de ferro azuis. Por trás delas, o mistério do que aconteceu ao jornalista freelancer indiano Jagendra Singh há quatro anos ainda não foi resolvido.
A 1 de junho de 2015 Singh estava à espera de uma visita, mas não sabia exatamente o que esperar. Escrevia há semanas sobre o alegado envolvimento do político local Rammurti Singh Verma na extração ilegal de areia. Tinha chegado a altura de se reunirem. No entanto, no início da tarde, a polícia apareceu em casa de Singh. A família Singh diz que veio acompanhada por apoiantes de Verma. Pouco depois, Singh chegou ao hospital em agonia com queimaduras em 50% do seu corpo.
“Porque é que me mataram?” disse num vídeo gravado no corredor do hospital local, para onde foi levado de urgência. “Os filhos da puta despejaram gasolina por cima de mim. Saltaram o muro e entraram. Se quisessem, podiam-me ter prendido.” Com os olhos fechados e sem conseguir olhar para a câmara, acusou os agentes da polícia e os apoiantes de Verma de lhe pegarem fogo. No vídeo, podemos ver as terríveis queimaduras. Morreu dos ferimentos, sete dias mais tarde. Tinha 46 anos.
Para além das datas e dos protagonistas envolvidos, os factos são contestados. A família Singh diz que ele foi atacado e incendiado. A polícia concluiu que ele cometeu suicídio. A única testemunha do incidente, uma amiga de Singh que estava em casa com ele, inicialmente apoiou a sua versão dos acontecimentos, mas mudou a sua história várias vezes. Mesmo numa entrevista recente, ela, de forma nervosa, contou três versões completamente diferentes do que aconteceu naquele dia.
Forbidden Stories, um consórcio internacional de 40 jornalistas que escrevem para 30 meios de comunicação social em todo o mundo (incluindo o Expresso, em Portugal), recolheu testemunhos que contestam a versão oficial de suicídio. Verificámos que a morte de Singh parece fazer parte do que se está, rapidamente, a tornar uma história de repressão e silenciamento de jornalistas por magnatas de areia indianos.
“Assim que escreveu contra o ministro [Verma], ficou em apuros”, diz a viúva de Singh. “Eu avisei-o. Disse-lhe que não devia escrever aquelas histórias, e ele disse que queria acabar a história.” Desde o início da sua carreira jornalística em 1999, Singh mudou várias vezes de meio de comunicação, porque sentia que era regularmente censurado. “Às vezes diziam aos chefes dele para que largassem uma história ou pagavam-lhes para não avançarem com as notícias, e o meu pai ficava furioso”, lembra Rahul, o segundo filho de Singh.
Singh publicou a 27 de abril de 2015 o primeiro post no Facebook acusando Verma — na altura ministro da Assistência Social de Uttar Pradesh — de dirigir operações ilegais. O seu trabalho jornalístico era seguido por milhares de pessoas no Facebook.
“Não há praticamente nenhum negócio ilegal que não seja dirigido pelo ministro Ramamurthi Singh Verma”, escreveu. Um dos negócios do ministro, disse, era a extração ilegal de areia. Singh publicou uma notícia, juntamente com fotos, acusando os trabalhadores do ministro de extração ilegal de areia no rio Garra. Singh afirmou que Verma subornou a polícia local com dez mil rupias (cerca de 130 euros) diárias para permitir a extração.
Segundo um porta-voz, Verma não pôde responder porque está hospitalizado.
A tensão entre os dois homens foi crescendo durante semanas. Apoiantes de Verma apresentaram denúncias alegadamente falsas contra o jornalista. Singh continuava a escrever sobre o ministro e as coisas foram piorando. As ameaças também foram físicas: o seu tornozelo foi partido, no que descreveu como sendo um ataque por parte dos apoiantes de Verma.
No entanto, Singh persistiu. Os seus amigos confessam que a determinada altura o jornalista decidiu jogar segundo as regras do ministro, coisa que não tinha nada a ver com a sua personalidade. Desesperado, ajudou a apresentar uma denúncia supostamente falsa contra Verma acusando-o de violar uma mulher. A queixa foi retirada após a morte de Singh.
Dinheiro para calar a família
No dia do funeral de Singh, a 9 de junho de 2015, o seu filho apresentou uma queixa contra Verma e cinco agentes da polícia por homicídio e imolação. Não demorou muito até o ex-ministro entrar em contacto com a família.
Membros da família de Singh revelaram ao Forbidden Stories e a um jornalista do Le Monde (França) que desistiram do caso depois de chegarem a um acordo com Verma.
Após a morte de Singh, a atenção dos media manteve a família segura e esperançosa durante algumas semanas. Mas os jornalistas acabaram por se ir embora. A família começou a sentir-se sozinha e impotente para enfrentar Verma. Familiares e amigos começaram a forçá-los a aceitar um acordo com o ex-ministro. A viúva de Singh disse que temia pela vida das crianças. “Muitos dos nossos familiares, de repente, viraram-se contra nós”, lembra. “Disseram-nos que era uma ameaça para a vida dos meus filhos.”
A família alega que Verma lhes deu o equivalente a três milhões de rupias (quase 40 mil euros) em dinheiro. Entenderam que esta generosa doação estava condicionada a uma declaração da família dizendo que Singh se tinha suicidado. Por fim, a 23 de julho de 2015, o filho de Singh retirou a queixa.
Um mês depois, Verma prestou um depoimento à polícia em que apelidava de “falsa” a queixa apresentada contra ele pelo filho de Singh. Verma afirmou também que ninguém assediou Singh nem o queimou. Nesse depoimento Verma não fala nem sobre o acordo com a família nem sobre o dinheiro.
De acordo com a família, Verma queria que o dinheiro fosse gasto com a filha de Singh, Diksha. “Eduquem-na e deixem-na estudar até querer e depois casem-na e usem esse dinheiro para o seu casamento”, disse Verma, segundo recorda o filho de Singh.
Hoje em dia, a família está dividida por este compromisso. A filha de Singh — determinada a que o assassinato do seu pai seja reconhecido — recusa-se, contra a vontade da sua família, a tocar no dinheiro e a casar.
“Ele queria lutar pela justiça, e sempre quis fazer algo de bom por Shahjahanpur”, lembra hoje. “Muito poucas pessoas são tão corajosas para enfrentar um poderoso ministro. O meu pai era uma dessas raras pessoas que expôs a verdade.”
Mais três jornalistas mortos
Na Índia, Singh não foi o único jornalista alegadamente atacado por escrever sobre as máfias de areia. Sandeep Kothari, que morreu apenas duas semanas depois de Singh, Karun Misra (em fevereiro de 2016) e Sandeep Sharma (em março de 2018) estavam todos a investigar a extração ilegal de areia quando foram mortos.
“A máfia da areia é atualmente considerada um dos grupos de crime organizado mais proeminente, violento e impenetrável na Índia”, de acordo com Aunshul Rege, professor associado do departamento de justiça criminal na Universidade Temple, na Filadélfia. E querem manter os seus negócios em segredo.
No terreno, organizações não governamentais e jornalistas que tentaram levantar o véu sobre o funcionamento da indústria de extração de areia enfrentam uma série de ameaças. Quanto mais se pesquisa, mais avisos aparecem: quando se mexe nos negócios da areia, a intimidação é frequente e a corrupção é sistémica.
Apesar de aparentemente estar à disposição de todos, a areia é uma mercadoria lucrativa. As praias são uma fonte de minerais valiosos, tais como a granada, a ilmenita e o zircão — utilizados para, entre outras coisas, cortar e destruir metais utilizados no fabrico de aeronaves ou na indústria automóvel.
Ao longo da costa de Tamil Nadu, a extração ilegal de areias tem vindo a aumentar rapidamente desde 2000. Em 2013, as autoridades estaduais decidiram, finalmente, atuar. Foi declarada a proibição da extração enquanto eram abertos inquéritos às atividades ilegais de mineiros privados. No entanto, entre 2013 e 2016, os mineiros privados continuaram a exportar, para fora do país, mais de dois milhões de toneladas métricas de minerais, de acordo com um relatório de peritos submetido ao Supremo Tribunal de Madras.
Sandhya Ravishankar, uma jornalista de Chennai, em Tamil Nadu, é uma das poucas jornalistas a ter investigado este assunto.
Assim que publicou a sua primeira história em 2013, foi lembrada da sensibilidade do tema: “No dia em que foi publicado, uma hora ou duas depois, acusaram o jornal de difamação, e o meu nome estava entre os acusados”. A jornalista de Chennai escreveu, depois, uma série de mais seis artigos. Ninguém os quis publicar. Por fim, em janeiro de 2017 o site indiano de notícias The Wire, sem fins lucrativos, publicou os resultados da sua investigação. A jornalista diz que começou a receber telefonemas ameaçadores, foi seguida e publicaram na internet imagens de videovigilância de um encontro que teve com uma fonte.
“Sandhya Ravishankar tem uma quezília pessoal contra a nossa empresa”, disse o porta-voz de uma das empresas sobre as quais a jornalista escreveu. Numa longa declaração, criticam fortemente a jornalista, que dizem trabalhar para os seus concorrentes.
Após estas ameaças, Ravishankar continuou a sua investigação à distância. Por razões de segurança, nunca mais voltou àquele lugar específico. Forbidden Stories e Ravishankar continuaram a investigar a extração ilegal de areia da praia em Tamil Nadu.
Num dos bairros onde a extração ilegal tem sido mais agressiva, as pessoas têm medo de falar. O medo é tal que alguns moradores nem se atrevem a dizer o nome do império de extração de areia da praia local: V.V. Mineral.
A empresa é dirigida por S. Vaikundarajan, cujo nome aparece mais do que uma vez em investigações estatais e encomendadas pelo tribunal. “Cerca de 85 a 90 % da extração de areia da praia, legal e ilegal, é monopolizada por esta família”, disse Ravishankar.
Numa declaração enviada ao Forbidden Stories, um porta-voz de Vaikundarajan declarou que no que diz respeito a essas investigações, “todas as alegações são infundadas e não foram feitas de acordo com a lei”.
Uma ameaça para a água potável, a pesca e a biodiversidade
Em todos os cantos de Thisayanvilai há algo que nos lembra a V.V. Mineral. O mais notável é a Faculdade de Engenharia V.V., um imponente prédio novo construído em 2010 e protegido por guardas. A imaculada fachada branca e cor-de-rosa destaca-se no meio de uma aldeia rural e pobre. Um pouco mais adiante, um centro de saúde exibe o nome da proeminente empresa do sector de areia. No entanto, a longo prazo, o impacto ambiental da extração de areia arrasa com este registo dourado.
Num relatório publicado em maio, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente salientou os impactos ambientais e sociais da extração de areia, dizendo que este é um tema com uma importância global. “O crescente volume dos agregados extraídos, muitas vezes ilegalmente, de ribeiros e ecossistemas marinhos resulta numa erosão dos rios e da costa, ameaças à água potável e à pesca e biodiversidade marinha”, afirma.
A procura por minerais de areia da praia não requer tanta areia como a construção, mas ainda assim perturba o ecossistema. “Somos a única empresa que opera com uma autorização ambiental válida… como tal, a degradação ambiental é uma história inventada que foi disseminada com segundas intenções”, diz o porta-voz de Vaikundarajan, que acrescenta que a erosão é causada pelo aquecimento global.
Até agora, pouco foi feito pelas autoridades, jornalistas e organizações não-governamentais para medir o impacto que a extração de areia tem tido sobre o ambiente em Tamil Nadu. No entanto, os testemunhos recolhidos apontam na mesma direção.
“Um impacto que é muito claro é que as dunas têm desaparecido, e o mar está a vir para terra”, diz Ravishankar.
Jornalistas de Forbidden Stories reuniram-se com um pescador de Kovali, uma aldeia em Tamil Nadu, que culpa a extração ilegal de areia na região pela erosão que faz com que o mar roube cada vez mais espaço de praia, todos os anos. As casas têm de recuar para o interior ou serão engolidas pelo mar. “Todas as casas que estavam aqui, há três ou quatro anos, incluindo a minha, desapareceram para sempre”, disse. Ele afirma que cerca de 300 pessoas perderam suas casas naquela região.
Devido à perda da barreira natural de areia, pensa-se que a água salgada tenha infiltrado os lençóis freáticos. “A água ficou salgada”, disse um agricultor local de Kuttam. “As plantas de bananeira não se adaptam à água salgada. Chegou uma altura em que tive de vender a terra.”
O impacto pode ser de longa duração. “A erosão costeira pode ocorrer mesmo décadas após a extração de areia parar”, disse Pascal Peduzzi, chefe da Unidade de Alterações e Vulnerabilidade Global do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.
No entanto, os jornalistas que tentam expor as máfias de areia que devoram a costa indiana são constantemente ameaçados. Em maio de 2019, o Comité para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) registou um novo ataque em Odisha, um estado costeiro, a norte de Tamil Nadu. “Seis indivíduos não identificados, empunhando uma catana e outros objetos pontiagudos, atacaram o jornalista Pratap Patra”, que diz acreditar que o incidente estava relacionado com o artigo que publicou alegando que um operador local de extração de areia estava a trabalhar ilegalmente, de acordo com o CPJ.
“Havia alguns jornalistas que escreviam sobre isto antes de eu ter começado, mas foram perseguidos e as suas famílias foram ameaçadas, e acabaram por desistir. Não tiveram grande escolha”, disse Ravishankar sobre a escrita de notícias relacionadas com a extração de areia em Tamil Nadu. “Hoje, sou provavelmente a única que ainda investigo o assunto.”