Sociedade

Made in China

O mundo é uma gigantesca fábrica de roupa, onde Portugal vende mais do que compra e até as marcas que nos vestem são clientes

TIAGO SOARES (texto), SOFIA MIGUEL ROSA (INFOGRAFIA)

O que é que tem vestido? Não tem de responder; basta saber que as nossas roupas valem muito, muito dinheiro. Saiba também que, no início, as marcas que vestimos são tão clientes como nós. As principais têm fábricas próprias, por isso, assim que o design de uma peça é decidido, a encomenda é feita de modo a que a ideia possa ser materializada. Uma fábrica na China, por exemplo, pode fazer roupa para três ou quatro marcas diferentes que sejam concorrentes entre si. E quando dizemos fazer, estamos a falar em encontrar, receber e trabalhar a matéria-prima, e cortar e coser até uma forma final, que satisfaça a marca e, mais importante, nos vá satisfazer a nós. Para essa fábrica, a etiqueta que vamos espreitar quando estivermos às compras é apenas um pormenor.

No que diz respeito à viagem até à loja, a China surge destacada no primeiro lugar como o país do mundo que mais roupa exporta. Falemos em T-shirts: foram mais de 460 mil toneladas de T-shirts Made in China enviadas para outros países em 2018; quase 100 mil dessas toneladas foram parar aos Estados Unidos da América. A China, aliás, exporta mais roupa do que todos os países da União Europeia juntos. Seguem-se o Bangladesh e o Vietname, que, ao contrário da China, tem acentuado o seu crescimento no sector. Cerca de metade da produção de roupa mundial é feita na Ásia, algo que é explicado em parte pelos baixos salários praticados. No Bangladesh, o salário mínimo para um trabalhador da indústria têxtil é de 8 mil taka por mês, mais ou menos 85 euros, um valor aumentado o ano passado mas ainda assim longe dos 16 mil taka que os trabalhadores exigiram durante as negociações, o suficiente para necessidades básicas como casa, comida, educação e saúde na maior parte das cidades do país. No Paquistão, os funcionários da indústria ganham em muitos casos 90 dólares por mês, apesar de o salário mínimo nacional ser de 140 dólares.

Além disso, esses países têm uma grande dependência económica dos mercados de têxtil e vestuário. Do total de exportações do Paquistão, 92 por cento são artigos têxteis e de vestuário; no caso do Bangladesh, o valor é de 84 por cento. Mesmo uma economia gigantesca como a da China depende da roupa em 11 por cento. Os problemas associados à indústria da roupa nos países em vias de desenvolvimento são por isso três: os direitos dos trabalhadores (incluindo salários dignos e liberdade sindical), a sua segurança no local de trabalho e a necessidade de uma maior transparência em todo o processo, desde a origem do tecido até às lojas onde será vendido. As melhorias nestas duas frentes são encorajadoras, mas ainda insuficientes, como concluiu o relatório “Fashion Transparency Report 2018”: “Ainda há um longo caminho a percorrer até à transparência das marcas e retalhistas.”

A existir um catalisador para o progresso já alcançado tem uma data associada: 24 de abril de 2013, quando uma fábrica de roupa colapsou em Savar, no Bangladesh. No dia anterior rachas nas paredes foram filmadas e o edifício evacuado, mas o dono da fábrica disse publicamente que o edifício tinha condições de segurança e que os empregados deviam voltar ao trabalho no dia seguinte, sob pena de não receberem um mês de salário. O prédio colapsou e 1134 trabalhadores morreram. A produção era feita para marcas como a Primark, Mango, El Corte Inglés e Benetton. No rescaldo da tragédia, a Benetton negou ter qualquer ligação à fábrica de Savar, mas entre os destroços foram encontradas roupas com a etiqueta da marca, que acabou por admitir não conhecer por completo todas os pormenores da sua cadeia de fornecedores.

Menos transparente ainda é a origem dos tecidos. A rastreabilidade das fibras que são depois transformadas em roupa é um dos pontos onde as principais marcas mais falham.

De acordo com o “Ethical Fashion Report” de 2018, apenas 7 por cento das marcas inquiridas sabiam de onde vinha a matéria-prima usada para fazer as suas roupas (como o algodão), e só 23 por cento divulgava as conclusões das auditorias.

MADE IN PORTUGAL

No caso de Portugal, a roupa é uma das coisas que o país vende mais do que compra, e em que a nossa balança comercial é saudável. Voltemos às T-shirts: em 2018 Portugal exportou 39 mil toneladas de T-shirts para o mundo, e importou 15 mil toneladas. Também saudável parece ser a nossa relação com a Espanha neste campo. É o país com quem mais transações fazemos: mais de um milhão em roupa importada do país vizinho em 2018, e quase dois mil milhões que fizeram o caminho inverso. Mas atenção, porque os números não contam a história toda: Portugal importa quase metade da sua roupa de Espanha, mas isso não significa que o seu novo casaco de primavera tenha sido feito aqui ao lado, mas apenas que passou por lá mesmo antes de chegar à loja onde o comprou.

Para este volume de negócios entre os dois países muito contribui a presença em solo português da gigante espanhola Inditex, que detém no seu portefólio marcas como a Zara, a Bershka, a Pull & Bear e a Massimo Dutti. No seu relatório oficial de 2017, a empresa assinala o papel central que as fábricas portuguesas têm enquanto fornecedoras: quase 50 mil pessoas trabalham para a Inditex em Portugal, espalhadas por 1344 fábricas. Pode parecer bastante, sobretudo porque a empresa também sublinha que 57 por cento das suas roupas são feitas em áreas próximas de Espanha — Portugal, Turquia e Marrocos — mas não se comparam às 217 mil pessoas que trabalham na Índia (em apenas 382 fábricas), ou aos 540 mil trabalhadores no Bangladesh, arrumados em quase 300 fábricas.

Mas é o calçado a joia da coroa portuguesa, apesar das exportações de sapatos terem abrandado em 2018. O nosso sapato é tão desejado que 95 por cento da produção são exportados. Foram dois mil milhões de euros em sapatos exportados no ano passado, e um honroso 12º lugar entre os países que mais sapatos vendem, fruto do trabalho de quase duas mil empresas e 40 mil postos de trabalho. A França, a Alemanha, e a Holanda são os países que mais compram o nosso calçado. E claro, a Espanha.

Portugal e Espanha podem ser melhores amigos quando falamos de negócios internacionais, mas os portugueses parecem ter perdido algum do amor que tinham por marcas espanholas: a irlandesa Primark destronou a Zara, passando assim a ser a marca mais vendida em Portugal. A conta é simples: uma em cada dez peças de roupa vendidas no mercado português é da Primark, cujas 11 lojas batem as 44 da marca espanhola, e as 338 de todo o universo Inditex. A competição conta ainda com a concorrência feroz de marcas como a Mango, H&M ou Nike. No fundo, a roupa que vestimos não é das pessoas que a fazem, da mesma forma que não é das marcas que a vendem.