Sociedade

Uma discussão não consensual sobre os media que mostraram e omitiram o vídeo do ataque na Nova Zelândia

Se os jornalistas dão ao terrorista “o oxigénio da publicidade”, qual a responsabilidade dos jornais ao noticiar o terrorismo? A pergunta voltou a impor-se após o ataque na Nova Zelândia e a existência de um vídeo partilhado em direto no Facebook pelo principal suspeito do tiroteio nas duas mesquitas

Brenton Tarrant numa fotografia de 16 de março de 2019
Mark Mitchell/New Zealand Herald/Pool/REUTERS

Podemos começar pelo óbvio: “Qualquer terrorista tem meios limitados e importa-lhe fazer algo propagável em termos comunicativos. É isso que interessa. Para que o seu círculo próximo receba a informação do que conseguiu fazer e porque também é seu objetivo espalhar o medo”.

A declaração feita ao Expresso por Gustavo Cardoso, professor catedrático no ISCTE-IUL, em Lisboa, é uma parte da equação. A outra sumarizou-a o historiador norte-americano Walter Laqueur, em 1999, ao acrescentar que “os media encontram nos atos terroristas todos os ingredientes para uma história emocionante”.

É esta aparente relação de ‘melhores amigos’ que conduz ao dilema das imagens que foram transmitidas em direto no Facebook pelo principal suspeito do ataque a duas mesquitas na Nova Zelândia. “Qual é então a responsabilidade dos jornalistas que dão ao terrorista o oxigênio da publicidade?”, perguntava numa apresentação Charlie Beckett, diretor do think tank POLIS (especializado em questões de media) da London School of Economics.

Entre a decisão editorial de publicar ou não publicar o vídeo - que a rede social apagou depois de alertada pela polícia -, Gustavo Cardoso tem claro que não divulgar implica “não cumprir o papel da informação”. Num universo online, estando as imagens ou os conteúdos disponíveis, “eles vão ser procurados e vistos”, justifica, pelo que o essencial é a contextualização.

Ao jornalismo compete explicar o que está por trás da mensagem, fazendo a sua desconstrução, ou seja, “não cumprindo o objetivo do terrorismo, mas explicando o que está a acontecer”, conclui o sociólogo. Exemplifica: “Não interessa passar as imagens até à exaustão, como aconteceu com o 11 de Setembro ou noutras ocasiões, mas selecionar os fotogramas que sejam relevantes para informar” e trazer um valor acrescentado à notícia.

Pressão colocada nas redes sociais

Para Ricardo Costa, diretor de informação da SIC, o caso da Nova Zelândia acabou por “colocar a pressão muito mais do lado das redes sociais”, por permitirem a transmissão de um vídeo em direto com a duração de 17 minutos e um conteúdo de extrema violência. “Não o conseguiram evitar”, o que nos leva à velha questão dos filtros usados por estas plataformas, sublinha.

Em relação aos media, o diretor de informação da SIC - canal que optou por transmitir apenas parte das imagens - acredita que o caso foi, no geral, bem gerido pelos órgãos de comunicação.

“Para nós nem foi uma questão especial. É a regra: mostrar, excluindo as partes mais violentas ou chocantes”. Porque há informação que é importante transmitir, seja o teor do manifesto deixado pelo autor do ataque ou as frases inscritas na arma que usou.“Depois deste ataque, li mais coisas importantes sobre as redes de extrema-direita, o seu funcionamento e linguagem, por exemplo, do que tinha visto até agora”, conclui.

Outra opção tomou o Expresso, que nada publicou desse vídeo (a RTP assim decidiu também) ou do manifesto. “Estaríamos a servir os objetivos do terrorista, que são o da propaganda da sua mensagem”, considera o diretor do jornal, Pedro Santos Guerreiro.

O manifesto foi usado “como fonte” para definir o perfil do terrorista em causa, explica, mas neste caso acabou por ser “relevante a autoria do vídeo e a própria conceção das imagens, que sugerem um videojogo, tornando quase irrealista e estético o que é um ato de um terrorista assassino”.

Várias lógicas de lidar com a informação

Charlie Beckett falava do desafio de “criar narrativas precisas, inteligíveis e socialmente responsáveis”, fazendo escolhas que “minimizem os danos e maximizem o entendimento”.
A tarefa pode parecer mais difícil num mundo globalizado de notícias “non stop”, mas na prática, defende Gustavo Cardoso, trata-se de cumprir a missão do jornalismo tal como ela sempre foi assumida, com os deveres de atender à credibilidade e veracidade acima de tudo.

Há um caminho ainda a fazer, admite, já que “vivemos um momento de transição, que não é simpático, de adaptação a uma nova realidade”. Uma realidade que nos força “a lidar com várias gerações e com várias lógicas de lidar com a informação”.

Há muito por aprender, concorda Luís Santos, professor do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, acrescentando que “se o jornalismo não mostrar que é socialmente relevante, porque faz as coisas de outra maneira, diferente, um dia será difícil saber para que serve exatamente”.

Em relação ao vídeo, como em qualquer matéria que exija uma decisão em cima do momento, Luís Santos acredita que “ajudaria que cada empresa refletisse antes, chegasse a um conjunto de normas” que possam apoiar estas opções. “As imagens serão sempre vistas, sabemos isso. Mas mostrar ou não mostrar, escolher apenas uma parte... Isso pode ser precisamente o que me distancia do outro”

Em 2016, alertava Charlie Beckett para o facto de “a lógica noticiosa dos media determinar a importância de uma história e a sua forma e escala de tratamento muitas vezes de acordo com uma mentalidade de ‘seguir o rebanho’ ou insistir nas mesmas fórmulas”. De certa forma, é também de distanciamento que falava, recomendando “a criação de narrativas mais construtivas que incluam empatia, resiliência e respostas positivas ao terror como parte da própria cobertura das notícias”: “O impacto social da cobertura de notícias deve ser considerado, não apenas os números de audiência e o drama do evento”, defende o investigador da London School of Economics.