Sociedade

Pais das crianças do São João movem ação judicial para impedir transferência da pediatria

Grupo de pais receia que ministério da Saúde esteja a preparar a transferência da pediatria do São João para o Centro Materno-Infantil, que integra o Centro Hospitalar de Santo António, e para o IPO. Para travar mudança, vão interpor uma ação judicial, apesar de o ministro Adalberto Campos Fernandes garantir que tal cenário “é infundado”

Ministério da Saúde afiança que decisão sobre o futuro da ala pediátrica do São João está a ser finalizada e não passa pela deslocalização
Rui Duarte Silva

Jorge Pires, pai de um adolescente internado na oncologia pediátrica do Centro Hospitalar de São João, no Porto, lidera um movimento de pais que se opõe a uma eventual deslocalização dos serviços para o Instituto Português de Oncologia e para o Centro Materno-Infantil do Norte (CMIN).

Apesar de ser um dos principais rostos da contestação à falta de condições da ala pediátrica do maior hospital do norte do país, a funcionar em contentores há nove anos, Jorge Pires afirma ao Expresso que a mudança “é uma péssima solução”, por sujeitar os doentes a “possíveis riscos de vida” com mais viagens de ambulância do que já fazem as crianças para exames ou internamento nos cuidados intensivos no edifício central do São João, “o único com urgência pediátrica 24 horas por dia” na região.

Foto Rui Duarte Silva

“O que denunciámos há mais de um mês são as más condições das instalações provisórias, “não a excelência” dos serviços médicos ou a falta de equipamentos, “alguns dos quais não existem nas unidades de saúde para onde querem transferir os nossos filhos”, diz o porta-voz dos familiares dos pacientes, lembrando que “onde há fumo há fogo” e, por isso, mais vale prevenir do que remediar.

A ação contra o Estado irá dar entrada no Tribunal Administrativo do Porto nos próximos dias, através de uma associação de pais, decisão que justifica face à informação da mudança que circula entre os profissionais do hospital. O receio de pais e do corpo clínico da transferência de serviços, definitiva ou provisória, até à construção da nova ala pediátrica, anunciada desde 2011, adensou-se após o Ministério das Finanças se ter reunido, há duas semanas, com as administrações do Centro Hospitalar Santo António, a que pertence o CMIN, e com o IPO do Porto, sem a presença do ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes.

O cenário da deslocalização da pediatria do São João é, contudo, desmentido pelo Ministério da Saúde, que considera “totalmente infundada” a informação sobre a alegada reestruturação em curso. Ao Expresso, o IPO e do CMIN também não confirmam a transferência temida.

Embora não adiante qualquer justificação para a derrapagem no aval de construção da nova ala pediátrica do São João, o gabinete do ministério da Saúde garantiu ao Expresso que “o processo de decisão está a ser finalizado”. A garantia não tranquiliza, porém, clínicos e pais dos pequenos pacientes, alarmados com o silêncio de Adalberto Campos Fernandes, que avançou, no Parlamento, que a verba de € 23 milhões para desbloquear o projeto da pediatria do São João sairia da gaveta até final de abril.

Médicos contra destruição por decreto

O impasse na decisão sobre a melhoria das instalações da ala pediátrica e a eventual deslocalização dos serviços levaram Maria João Gil da Costa, oncologista pediátrica no Hospital de São João há quase 30 anos, a escrever uma “nota de alerta” a várias entidades com responsabilidades no SNS, entre as quais ao Ministério da Saúde.

Sem colocar em causa a qualidade das outras instituições de saúde, a pediatra defende que a deslocalização, a acontecer, será um enorme passo atrás ao nível das práticas recomendadas internacionalmente para a oncologia pediátrica, que sustenta devem estar integradas, como é o caso do São João, com todas as outras especialidades pediátricas, “e idealmente”, num grande hospital universitário, com componente de oncologia de adultos.

Foto Rui Duarte Silva

Mesmo reconhecendo que as instalações são deficitárias e a funcionar há quase uma década em contentores previstos para durarem três anos, Maria João Gil da Costa afirma que não existe “melhor modelo de funcionamento para a oncologia pediátrica” do que aplicado no São João: “Os doentes oncológicos pediátricos precisam de uma ambiência multidisciplinar pediátrica, onde se incluem cirurgiões pediátricos e neurocirurgiões em permanência, cuidados intensivos co-locados, bem como todas as outras valências pediátricas.”

A especialista, que refere falar em nome do restante corpo clínico, adverte ainda que “além de os oncologistas pediátricos não trabalharem sozinhos, há recursos fundamentais para as crianças/adolescentes oncológicos, como a radioterapia, anatomia patológica, imagiologia, imuno-hemoterapia, entre outros, que não podem ser rentabilizados só para crianças”.

Para a pediatra, o que está em causa é uma questão de segurança no tratamento das crianças e jovens, que necessitam de recursos multidisciplinares pediátricos que podem ser vitais em determinados momentos. Face ao aumento da idade pediátrica para os 18 anos, beneficiam também dos serviços integrados de oncologistas e cirurgiões de adultos. “Há adolescentes que apresentam neoplasias do tipo adulto e adultos jovens com neoplasias do tipo pediátrico, o que torna vantajosa essa proximidade clínica, ímpar em Portugal”, refere.

Maria João Gil da Costa recorda que a prática de oncologia pediátrica no São João remonta, nos tumores líquidos, a 1982, nos sólidos a 1989 e nos cerebrais a 1992. A oncologista refere que houve desde então “um grande esforço para desenvolver equipas multidisciplinares, que não se formam nem se diferenciam em meses ou anos”, mas que para serem “destruídas basta apenas uma portaria ou decreto”.

Não estragar o que está bem

A especialista afirma que o reconhecimento do trabalho desenvolvido no São João, “inclusivé a nível internacional”, não se reproduz com a eventual transferência de oncologistas pediátricos para outras unidades de saúde. “A nossa luta é para não estragar o que demorou tanto tempo a conseguir”, refere, lembrando que ninguém mais dos que os profissionais do São João alertou para “os perigos de tirar a pediatria do edifico do hospital e dos problemas que tal iria acarretar”.

Lembra ainda que está em curso a certificação nacional, e a breve prazo internacional, de uma única Unidade de Referência de Oncologia Pediátrica no Norte, que envolve o São João e o IPO, que se complementam há 10 anos no tratamento de patologias oncológicas pediátricas (líquidas no IPO, neurológicas no São João, sólidas repartidas). “Uma eventual retirada da pediatria do São João comprometeria, entre outros problemas, todo esse processo”, garante.

O Expresso tentou ainda confirmar a eventual mudança junto da Administração do São João, que optou por autorizar o contacto com Maria João Gil da Costa.