Sociedade

O que sobra a um é o que falta a outro

Estima-se que um milhão de toneladas de alimentos seja desperdiçado por ano em Portugal. Para fazer a ponte entre o que sobra a um e falta a outro, há associações como a Refood, que já distribui cerca de 35 mil refeições por mês. Este é o 13.º artigo da série “30 Retratos” que o Expresso está a publicar diariamente: são 30 temas, 30 números e 30 histórias que ilustram o que Portugal é hoje em vésperas de eleições

A partir das oito da noite, as famílias podem começar a recolher a comida que os voluntários já distribuíram pelos vários sacos no núcleo da Refood em Alfragide
Marcos Borga

Das seis da manhã às dez da noite, Carlos Cardoso trabalha no seu restaurante em Alfragide e só a trabalhar horas seguidas é que consegue aguentar o negócio. “Está difícil”, diz por trás do balcão. Serve sobretudo almoços e faz para que pouco sobre daquilo que cozinha nesse dia, pois é preciso controlar bem as despesas. As mesas estão vazias, a televisão ligada, são cerca de 18h30 numa terça-feira de agosto. Há alguns bolos e salgados por vender, mas é pouco provável que alguém ainda os compre. Por isso, quando Fernando Cerqueira entra no restaurante com um saco térmico na mão, Carlos embrulha dois bolos e um salgado e dá-lhe.

Praticamente à mesma hora, também em Alfragide, Rogério Paulo vai a caminho da Rua Miguel Torga. Mora ali perto, no bairro do Zambujal, com a mulher e o filho. Durante toda a vida foi eletricista: começou a trabalhar aos 14 anos, até que aos 40 foi obrigado a parar. “Descobriram-me um problema na cabeça. Há sete anos que espero para ser operado.” Por agora vive com uma reforma de “trezentos e poucos euros”, aos quais se junta o dinheiro que a mulher consegue ganhar nas quatro horas de limpezas entre as cinco e as nove da manhã. O que ganham os dois – para os três – é pouco. Mas não é suficientemente pouco para ter um apoio social que lhe permita “arranjar os dentes”, diz.

Foi por sugestão da assistente social que começou a deslocar-se todos os dias ao núcleo da Refood em Alfragide. Ali, por volta das seis da tarde, há já várias pessoas à porta, aguardando a hora de distribuição da comida. Cada um traz o seu saco e as caixas de plástico, já lavadas, onde no dia anterior levaram as refeições.

Para a ronda das 18h30, Fernando Cerqueira, voluntário de 61 anos, só leva salgados, bolos e pão para casa. Desta vez, as sobras que lhe chegaram são poucas, até porque agosto é um mais mês difícil por causa das férias. O salgado e os dois bolos que Carlos Cardoso embrulhou saíram do saco térmico que Fernando traz. Àquela hora, dentro do núcleo, a azáfama é clara: mais de dez voluntárias, de touca e luvas, arrumam os sacos das famílias inscritas no centro. Há pão de forma, pão fresco e bolos, além de sopa, arroz e pratos de carne e peixe.

Entre as 18h e as 20h, as voluntárias têm de distribuir a comida recolhida pelas várias caixas de plástico que as famílias levam para casa e trazem lavadas no dia seguinte
Marcos Borga

Além das 50 famílias da freguesia que todos os dias ali vão buscar comida, há mais 20 à espera que o centro consiga assegurar a quantidade necessária de alimentos para assumir esse compromisso. Além dos cafés e restaurantes da freguesia que aderiram à Refood, e que todos os dias dão o que lhes sobra, também supermercados como o Continente, Pingo Doce, Auchan ou Minipreço oferecem alguns produtos - e também lhes chegam refeições das cantinas de empresas como a Roche.

O núcleo de Alfragide é apenas um dos 16 núcleos da Refood a funcionar no momento – e até ao final do ano haverá mais cinco, em diversos pontos da cidade. A associação foi criada em 2011 com o objetivo de combater o desperdício alimentar, recolhendo sobras e conseguindo apoiar pessoas em situação de carência alimentar.

“Os primeiros beneficiários eram 50, agora há mais de dois mil. No início eram mil refeições por mês, agora são cerca de 35 mil”, explica Hunter Halder, fundador do Refood em Portugal. Desde a sua criação, o número de núcleos tem vindo a aumentar, assim como o total de voluntários – são cerca de 3.500 a trabalhar ativamente. “E temos centenas de outros que ainda estão em formação e que estão a preparar centros que ainda não estão a funcionar.” Se no início do projeto havia 30 restaurantes e empresas envolvidas, agora já são mais de 700.

Famílias geram quase um terço do desperdício

Pouco se sabe em Portugal sobre que quantidade de alimentos é desperdiçada diariamente no país inteiro. O único dado mais concreto foi avançado em 2012, em resultado do projeto exploratório PERDA (Projeto de Estudo e Reflexão sobre Desperdício Alimentar).

“Percebemos então que há um desperdício de um milhão de toneladas de alimentos por ano em Portugal. Ou seja, praticamente 100 quilos per capita”, aponta Iva Miranda Pires, professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e coautora do estudo. Sublinhando que este número é apenas indicativo e que não existem dados estatísticos sobre o assunto, a investigadora lembra que 31,4% deste desperdício é feito pelas famílias (324 mil toneladas).

“Porque é que não temos noção disso? Se cada família deitar fora duas laranjas, uma maçã e uma pera, multiplicando isso pelas famílias todas é uma quantidade muito elevada. Ou seja, uma laranja em casa de uma família são milhares em casa de todas as famílias. É preciso explicar essa escala às pessoas.”

Sem dados, é difícil saber se os portugueses desperdiçam hoje mais comida do que no passado. Porém, Iva Miranda Pires aponta que talvez há uns anos o desperdício não fosse tão elevado. “A entrada da mulher no mercado de trabalho teve impacto, porque antes fazia-se as compras de maneira diferente. Hoje faz-se as compras para o mês e a probabilidade de os alimentos se estragarem é maior.” E se ao longo das últimas décadas o rendimento das famílias foi aumentando, isso também trouxe “uma atitude mais negligente em relação à comida”. Ou seja, “pode ir para o lixo porque não foi assim tão caro”.

Só que mais recentemente houve mudanças. “A crise mudou isso. O rendimento diminuiu, passou a haver desemprego na família e o preço dos alimentos aumentou. Quando fizemos o inquérito para o estudo, em 2012, já se notava essa atitude diferente: mais cuidado com as sobras, mais atenção com a gestão dos alimentos em casa. Mas não há números sobre esse impacto.”

A investigadora acredita que as pessoas estão hoje “mais atentas e mais consciencializadas”. É aí também que associações como a Refood ou a Zero Desperdício têm um papel importante, fazendo a ponte entre o desperdício alimentar e quem precisa de ajuda alimentar. “Ainda há muito para fazer em Portugal. O desperdício tem questões económicas, ambientais e éticas. Mas não tem havido financiamento em Portugal para estudar o tema.”

Cada refeição por 10 cêntimos

Fernando Cerqueira tem 61 anos e é voluntário da Refood em Alfragide. Cabe-lhe fazer a ronda de recolha de comida que traz nos sacos térmicos
Marcos Borga

O núcleo da Refood em Alfragide funciona dentro do mercado, em dois espaços cedidos pela junta de freguesia – que também paga as despesas de luz e água. Paulo Santos, responsável pelo núcleo, diz que essa é uma “óptima ajuda”, porque assim apenas têm de pagar detergentes, sacos, embalagens e equipamentos, como as toucas e luvas. Tudo o que ali está foi oferecido: desde as arcas frigoríficas à máquina da loiça.

Hunter Halder diz ao Expresso que um estudo feito nos primeiros seis meses do funcionamento da Refood apontava para que cada refeição tivesse um custo de 10 cêntimos. Ou seja, os voluntários avançaram com 600 euros de investimento e distribuíram seis mil refeições durante esses seis meses, o que dá cerca de 10 cêntimos por cada. “Hoje há 21 instalações para manter. São precisos mais sacos, mais detergente e mais embalagens, mas mesmo assim cada refeição fica por menos de 10 cêntimos.”

Cada núcleo tem um grupo de responsáveis. Ali, em Alfragide, Paula e Paulo Santos, casados, têm um papel fundamental. Como qualquer outro voluntário da associação, passam duas horas por dia na associação, mas no caso deles dão também formação para outros núcleos que estejam a arrancar.

Paulo explica que aquele apoio alimentar “foi concebido para ser uma solução transitória” e que a cada família que se inscreve é feita uma avaliação de maneira a assegurar as necessidades de cada uma. Tanto há pessoas que vivem sozinhas como famílias de dez pessoas, entre as quais cinco crianças.

Durante a ronda do final da tarde, o que os voluntários mais recolhem é pão e bolos que sobram nos cafés e restaurnates. Só na ronda da noite conseguem as sobras dos jantares
Marcos Borga

Numa fase inicial, quando as famílias se inscrevem e são aceites, começam por receber apenas pão e bolos. Mais à frente, passam a ter um saco completo, que inclui sopa e prato. “Não há uma dose tipificada”, explica Paulo Santos. Em cada dia, a quantidade de comida depende das sobras recolhidas.

Depois da azáfama, por volta das oito da noite começa a estar tudo arrumado e pronto para as entregas às famílias. Rogério Paulo ainda só leva pão e bolos para casa. “Há dias melhores e há dias em que não há quase nada. É uma ajuda boa, mas às vezes é pouco.” Para lá da comida, há outras despesas que o assustam, como os livros do filho para a escola. “Nem sei se os consigo comprar este ano.”

Na outra ponta de Alfragide, também Carlos Cardoso confessa que a restauração já teve dias melhores e que o IVA a 23% veio dificultar o negócio. Mesmo assim, quando, um dia, os voluntários da Refood apareceram no restaurante a falar da associação e dos objetivos, Carlos ofereceu-se para dar o que não vende. Nem todos os dias tem sobras, mas quando as tem, por pouco que seja, terão melhor caminho se acabarem no saco de Rogério Paulo. Nos dias em que não têm nada para dar, na folha de registos da recolha fica escrito “amanhã há mais”.