Sociedade

Treze mil dias de mar

Carlos Alfaiate é pescador desde os 14 anos. Pescou na Mauritânia e em Marrocos, tem 36 anos e oito meses de mar no corpo, tirou chernes que valiam €1200. Passou décadas fora de Portugal e regressou em 2004, com arrependimentos e angústias. O sector de Carlos, que se fartou tantas vezes do mar, mudou nas últimas décadas e as 119.890 toneladas de peixe vendidas em 2014 são o valor mais baixo desde que há registos. Este é o sétimo artigo da série “30 Retratos” que o Expresso está a publicar diariamente. São 30 temas, 30 números e 30 histórias que ilustram o que Portugal é hoje em vésperas de eleições

As toneladas de peixe transacionadas em lota em 2014 são a quantidade mais baixa desde que há registos no INE
Luís Barra

Diamante Azul era o nome do primeiro barco em que Carlos Alfaiate começou a trabalhar, tinha então 14 anos. Andou na escola até ao 9.º e nessa altura foi preciso seguir outro rumo – o mesmo rumo que o pai, também pescador, tinha seguido. “Fui para o mar em março de 1976, tinha feito 14 anos uns meses antes.” Nos primeiros quatro meses de mar, Carlos, ainda pequeno, andou sempre junto à costa no barco de um pescador de Peniche, a aprender o que era ser pescador. Ali passou os primeiros dos seus mais de 13 mil dias – ou 36 anos e oito meses – de mar.

No Diamante Azul andava o dono do barco, os seus dois filhos e Carlos – ou “o saloio”, como lhe chamavam, por ali chegar novinho vindo de Ribamar, uma aldeia de pescadores perto da Lourinhã. Iam para o mar todos os dias da semana às cinco da manhã e para Carlos era impossível fazer o trajeto diário da casa dos pais em Ribamar até Peniche. Por isso, o dono do Diamante Azul pôs-lhe um colchão no chão do armazém onde o barco costumava ficar nas traseiras da casa. Foi ali que durante quatro meses Carlos dormiu. “Vinha ao fim de semana a casa, na camioneta para Ribamar. Depois voltava para Peniche no domingo, para já lá estar às cinco da manhã de segunda-feira.”

Já lá vão quase 40 anos desde esse início. Carlos Alfaiate tem agora 53 anos, ainda vive em Ribamar e é pescador. Só que entre esses primeiros meses de 1976 no Diamante Azul e os dias de hoje vai uma imensidão de tempo no mar. Ainda no final dos anos 1970, Carlos foi com o pai para a pesca nos Açores.

“Nessa altura, os Açores estavam praticamente virgens. Depois a pesca fraquejou, houve interdições.” Cerca de seis anos depois voltaram a Ribamar e pouco tempo depois Carlos seguiu para a Mauritânia e Marrocos, onde trabalhou durante os 30 anos seguintes, passando até três meses sem vir a casa.

Desse tempo, Carlos recorda o “muito dinheiro” que o armador do barco onde andava fazia com a pesca da lagosta. “Eram semanas em cima de semanas no mar. Ganhava-se, mas perdia-se mais do que se ganhava.” Foi um dos últimos a deixar a Mauritânia, em 2004, e há uma coisa que o marcou: “Não vi os meus filhos crescer.”

Há dez anos voltou a Portugal. “Comprei o meu barquinho e nessa altura percebi que o devia ter feito há 20 anos. A pesca nessa altura estava melhor aqui e se tivesse começado há 20 anos estava melhor hoje.”

Recordes baixos em capturas, altos em preços

As 119.890 toneladas de peixe transacionadas em lota em 2014 é a quantidade mais baixa desde que há registos (1969), segundo o Instituto Nacional de Estatísticas (INE) – menos 17,1% do que a quantidade de 2013. “O decréscimo em volume deveu-se à menor captura de peixes marinhos (-19,2%) no Continente, sobretudo de sardinha, atuns e cavala, que registaram menores volumes de captura (-42,8%, -21,2% e -20,8%, respetivamente) e à redução das capturas nos Açores, pela menor disponibilidade de atuns”, segundo o INE.

As estatísticas mostram ainda que, em contrapartida, o preço médio do pescado transacionado em lota em 2014 (2,02 €/kg) foi o mais elevado desde que há registos estatísticos. A sardinha atingiu o maior preço, com 2€ por quilo (1,43 €/kg em 2013), e o atum e a pescada atingiram os valores máximos de 2002 e 2009, respetivamente. A diminuição das quantidades capturadas conduziram à valorização de peixes habitualmente mais pescados, como a sardinha, o carapau, os atuns, o peixe-espada, as pescadas e o polvo, explica o INE.

Carlos Sousa Reis, especialista em pescas e antigo presidente do Instituto Português de Investigação do Mar (Ipimar), começa por apontar que as estatísticas da pesca “são muito frágeis” e que “dizem pouco da realidade” – em parte porque o controlo passa pelas vendas em lota e a quantidade de peixe vendido fora da lota tem vindo a aumentar, segundo Sousa Reis.

Para a quebra na quantidade de peixe transacionado em lota, o especialista diz haver várias razões. A primeira é a redução da frota pesqueira em Portugal, após a adesão à União Europeia. “Em 1969 tínhamos uma frota longínqua que operava em países como a Mauritânia, Marrocos, África do Sul. Chegámos a ter umas 60 ou 70 embarcações.” Pelo contrário, hoje “a capacidade de pesca de um pescador português é quase metade da de um pescador da Europa do Norte” e a frota portuguesa “é das mais antigas da UE”.

A redução do número de pescadores é outra razão, defendendo por isso a necessidade de se apostar numa “dignificação dos pescadores como classe profissional”. Em terceiro lugar, sublinha “fatores ambientais que diminuíram a quantidade de pescado”.

O ex-presidente do Ipimar lembra que o consumo de peixe em Portugal “é um dos maiores do mundo, com 60 quilos per capita”, e que mesmo quando a oferta diminuiu a procura não cai. “Os portugueses não deixam de comer peixe. As importações não param de aumentar.” O resultado é uma balança comercial com défice – mais importação do que exportação. “Importamos 1,5 mil milhões de euros de pescado por ano.”

A “malta jovem” não quer ir para o mar

Luís Barra

Carlos Alfaiate passou mais 30 anos da sua vida na pesca longínqua – na Mauritânia e Marrocos. Na altura em que regressou, há dez anos, comprou um barco mas deixou de o usar entretanto. “Tenho-o para vender. Quando o comprei foi caro – mas já não vale o que dei por ele. Devido à situação atual das pescas, não há tripulação. Da malta nova ninguém quer ir e a tripulação são só reformados.”

Carlos reconhece que hoje quase nenhum jovem quer ir para o mar. “São poucos os jovens que se dedicam ao mar. Aqui em Ribamar são mais os filhos dos armadores.”

Só que nos últimos anos houve momentos em que lhe pareceu que situação pudesse estar a mudar. “Com esta crise de emprego, aconteceu-me chegar a terra e encontrar alguns rapazes a perguntar se precisávamos de gente para ir para o mar. Estamos a falar de pessoal novo com 30 anos e vieram ter connosco pelo menos dois ou três indivíduos a perguntar se precisávamos de ajuda.”

Ultimamente, desde que parou o barco, a vida na pesca tem sido diferente – as viagens são mais curtas, no máximo durante oito dias. “Pescámos um cherne de 48 quilos que deu 1200 euros. Mas isso é só de vez em quando.” Para trás ficam mais de 13 mil dias no mar – ou 36 anos e oito meses, segundo a declaração de anos de embarcação que pediu recentemente.

Quando recua a março de 1976, Carlos lembra que ter deixado a escola para ir para o mar aconteceu “simplesmente porque tinha de ser”. “Não desgostei logo no início, mas ao longo de todos estes anos, durante várias vezes, senti-me farto do mar.” E o que é que fica de todos estes anos? “Arrependimento de não ter visto os meus filhos crescer. Quando comprei o meu barquinho é que comecei a ver isso. Tantos anos de ausência.”