Quase 20 anos depois do Viagra, está prestes a ser aprovado o primeiro medicamento criado especificamente para tratar a mais frequente disfunção sexual das mulheres. É cor de rosa e chama-se Flibanserin. Mas poucos acreditam que possa representar uma revolução semelhante à que o famoso comprimido azul significou para os homens.
O problema é muito mais complexo. No caso deles, a dificuldade é, na maior parte das vezes, fisiológica, quase puramente mecânica. No caso delas, no entanto, quase tudo se passa a nível do cérebro. Ninguém sabe exatamente porquê, mas a falta de desejo sexual afeta milhões de mulheres em todo o mundo e cerca de 35% em Portugal.
Esta terça-feira, a autoridade norte-americana do medicamento deverá seguir a recomendação do painel de peritos e dar, finalmente, luz verde ao fármaco, que já foi chumbado por duas vezes, em 2010 e em 2013, por se considerar que os benefícios eram demasiado modestos para compensar os efeitos secundários, como náuseas, fadiga e tonturas (ver texto relacionado).
Mas à terceira será de vez. Novos estudos indicaram uma melhoria estatisticamente significativa, ainda que ligeira, do nível e da frequência do desejo sexual e tudo indica que a comercialização do comprimido vai mesmo avançar. A novidade é total. Até agora, no campo da disfunção sexual, pode dizer-se que os homens ganhavam às mulheres por 26-0. Há 26 medicamentos aprovados para tratar distúrbios sexuais masculinos e nenhum para os femininos.
Na imprensa, o Flibanserin tem sido referido como o Viagra das mulheres, mas nada liga os dois fármacos. O sildenafil (substância ativa do Viagra) não aumenta o desejo sexual. Simplesmente dá ao homem a capacidade de o pôr em prática. Já o comprimido cor de rosa potencia a libido, atuando diretamente no cérebro. O medicamento reduz a serotonina, um neurotransmissor que inibe a resposta sexual, e faz aumentar os níveis de noradrenalina e de dopamina, conhecida como a amina do prazer e do amor.
“Eventualmente, poderá funcionar para algumas mulheres, no caso de haver um desequilíbrio ao nível destes neurotransmissores. Mas, na generalidade dos casos, as causas da falta de desejo são tão variadas e complexas que é utópico pensar que uma única substância pode resolver o problema”, explica Rui Costa, investigador do Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA).
O papel das emoções
Segundo o psicólogo clínico e sexólogo Jorge Cardoso, a falta de desejo sexual, a par da ausência parcial ou total de orgasmo, tende a ser a ser a queixa mais frequente das mulheres. “Fisiologicamente pode estar tudo bem, mas o desejo não aparece. Ao contrário do que acontece nos homens, é difícil atuar ao nível da farmacologia, já que o problema está muito dependente de questões emocionais, como a qualidade da relação, a sintonia com o parceiro, a perceção de um sentimento negativo, um ressentimento ou uma mágoa”, explica.
Ana Margarida Ribeiro, professora de Psiquiatria na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, concorda: “Na mulher, o desejo sexual parece englobar uma maior componente emocional e concretiza-se na relação do casal, na comunicação, na confiança, no suporte emocional, na intimidade e não apenas no coito.”
No geral, o desejo sexual — medido pela frequência de pensamentos sexuais e pela vontade de ter relações — é maior nos homens do que nas mulheres, o que pode ser determinado por fatores orgânicos, nomeadamente hormonais, mas também por questões psicológicas e socioculturais mais profundas e complexas.
“As mensagens sociais e parentais negativas acerca da sexualidade, a atribuição de um papel mais conservador e passivo à mulher, o reconhecimento e a valorização apenas recentes do prazer sexual feminino, ainda por explorar, ou a mediatização do corpo perfeito têm criado mitos e expectativas que podem limitar a aceitação ou a vivência saudáveis do corpo e da sexualidade” por parte das mulheres, diz Ana Margarida Ribeiro.
Nos consultórios de ginecologistas, sexólogos, psicólogos e psiquiatras, as mulheres queixam-se com frequência de falta de comunicação entre o casal. “A questão da intimidade, que se edifica segundo a relação de compromisso e confiança, na partilha dos corpos, dos gostos e ideias, dos objetivos e até mesmo das fantasias é muito deficitária. Infelizmente, cada vez mais os casais vivenciam as relações como se fossem estranhos, subvalorizando a partilha e a cumplicidade que deviam ser essenciais”, adianta a especialista.
O ‘continente negro’
A falta de comunicação também se sente no sexo. “Muitas vezes, dá-se pouca atenção e importância ao contacto físico em geral, à exploração do próprio corpo e do parceiro e à estimulação sensorial mútua, técnicas que são fundamentais para uma experiência sexual prazerosa e satisfatória”, frisa a psiquiatra.
Nuno Monteiro Pereira, especialista em sexologia e coordenador do estudo “Epidemiologia das Disfunções Sexuais em Portugal Continental”, a maior investigação realizada nesta área no país, vai mais longe: “A maior parte dos homens não percebe nada de sexualidade. Muitas vezes são egoístas e não se esforçam nada por criar ambiente nem investem nos preliminares”, fatores que são importantes para despertar o desejo nas mulheres (ver entrevista na página ao lado).
Mesmo sem desejo, muitas mulheres aceitam ter relações sexuais para satisfazer o parceiro. Não confessam a falta de vontade, nem eles sabem o que elas estão a pensar. Nem eles nem a ciência. Os investigadores admitem que ainda se sabe muito pouco relativamente à sexualidade feminina. Em pleno século XXI, a existência de um ponto G ou até do próprio orgasmo feminino ainda suscita dúvidas e levanta discussões. Já em 1926, Sigmund Freud, o pai da Psicanálise, afirmara que era muito mais fácil compreender os mecanismos do desejo no homem. “A vida sexual das mulheres é um continente negro para a psicologia”, admitiu. Quase cem anos depois, grande parte do mistério permanece. E não será um comprimido que o vai desvendar.