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Livros: As superfícies utópicas de Mathias Enard em “Desertar”

Entrelaçando duas narrativas díspares no mesmo romance, Mathias Enard prossegue em “Desertar” uma reflexão sobre as marcas inscritas pela guerra na experiência humana

O mais recente romance de Enard passa-se num navio de cruzeiro atracado em frente à “Ilha dos Pavões”, no lago de Wannsee, em Berlim
Imagebroker RF/Getty Images

O escritor francês Mathias Enard (n. 1972) pertence à categoria dos autores de ficção para quem a estrutura narrativa assume uma importância capital. Por exemplo, o efeito avassalador e hipnótico de “Zona”, o seu primeiro romance traduzido em Portugal, nascia da vertigem de uma única frase que atravessa perto de 500 páginas, acompanhando o monólogo interior de um espião de origem croata, “historiador da sombra”, enquanto viaja de comboio entre Milão e Roma, transportando documentos numa maleta, com nomes de carrascos e vítimas das guerras na orla mediterrânica, e um palimpsesto de memórias na cabeça. Já em “Bússola”, que venceu o Prémio Goncourt em 2015, acompanhamos a insónia de um musicólogo obcecado com as visões, fascínios e estereótipos ocidentais sobre o Oriente, saltando entre múltiplas histórias suas e outras tantas evocações eruditas, viajando através delas, perdendo-se e reencontrando-se, enquanto tenta adormecer, entre as onze da noite e as seis da manhã, numa extraordinária experiência de leitura que dura precisamente — se a cronometrarmos — o tempo daquela intensa vigília.