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Os Cadernos e os Dias

Os olhos, o cocuruto, os pés

História fragmentada do mundo

Uma notícia científica: “Cientistas conseguiram ressuscitar a actividade celular dos olhos humanos após a morte.”
A notícia diz ainda: “Este estudo junta-se a outros que têm levantado questões sobre a natureza irreversível da morte, como uma pesquisa de Yale onde os investigadores conseguiram ressuscitar os cérebros de porcos quatro horas depois da morte.”
As técnicas são várias e complexas, mas há nesta notícia algo que perturba.
Se podes reparar e ressuscitar a parte (os olhos), talvez possas também, um dia, recuperar, ressuscitar, o todo (o inteiro humano, dos olhos à nuca, do cocuruto à sola dos pés).

Em português, a palavra cocuruto parece nome de pássaro, mas não é.
Mas se pensarmos que quem tem nome de pássaro tem de ser pássaro, então todos os humanos terão a imerecida sorte de nascer já com um certo emissor de melodias caladas no exacto topo da cabeça.
Ou então pensar o cocuruto da cabeça como se este fosse, sim, um animal sensato que em vez de chilreio e melodias produzisse argumentação.
No meu caso, que numa linha recta me perco excessivas vezes, talvez pedisse, se possível, que o cocuruto que trago, sem dele sentir o peso, tivesse a modesta função de me orientar entre norte, sul, este, oeste, para onde vou e de onde vim — que a orientação no espaço — vim de onde, vou para onde — é evidentemente orientação metafísica.
Quem sabe exactamente para onde vai, e no caminho não se perde, ou é um sábio clarividente ou um evidente tonto.
A quem está no meio, como biliões de humanos e eu, pouco resta senão fazer do “estar perdido” um local minimamente confortável. Se vais passar muito tempo num sítio, instala nele cadeiras e janelas; que em vez de gritar por socorro quem está perdido se sente em cadeira decente (frase rápida terminada em rima curta).