Crónicas

Os quase ricos que estão a prejudicar as marcas de luxo

Na crónica ‘Sem Preço’, Catarina Nunes escreve sobre os resultados financeiros dos grupos de luxo, os sinais de crise e a onda de aquisições de marcas italianas

Apesar do desacelerar do consumo, o grupo LVMH aumenta as vendas em 15%
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A crise estava a demorar a fazer-se sentir no topo da pirâmide. Mas o sinal de alarme está dado quando o maior grupo de luxo declara que há consumidores que não estão a comprar tanto como outrora. São os chamados clientes aspiracionais (com rendimentos elevados não sendo ricos, ou os que poupam para ter acessórios e carteiras de luxo), que têm sido determinantes na dinâmica de crescimento do mercado de luxo. E continuam a ser, mas agora pela negativa.

Isto não é uma verdade absoluta para todas as marcas nem significa crescimentos negativos nos maiores grupos de luxo. O que se passa é que algumas das marcas que se posicionam para um público mais massificado estão a perder, enquanto as de ultra-luxo e mais exclusivas, ou de menor dimensão, mas mais caras, estão a ganhar terreno. Quem tem muito dinheiro está a comprar mais e melhor. Quem tem um orçamento razoável mas limitado está a cortar nos gastos supérfluos ou a desviá-los para viagens e para marcas de ‘luxo acessível’.

A diminuição da procura do conhaque Hennessy nos Estados Unidos leva ao recuo de 4% da divisão de champanhes e bebidas espirituosas do grupo LVMH
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Ou será que se acabaram as poupanças acumuladas durante a pandemia e as ‘compras de vingança’? Em declarações a investidores durante a apresentação dos resultados do primeiro semestre, no final de julho, Jean-Jacques Guiony, CFO do grupo LVMH, reconhece quedas nas vendas de produtos com preços de entrada, no online e em grandes cidades que não são capitais, considerando um sinal claro de que o cliente aspiracional não está a comprar tanto como costumava. Ainda assim, as vendas do maior grupo de luxo crescem 15% nos primeiros seis meses de 2023, para €42,2 mil milhões. Na sequência da apresentação de resultados, as ações do grupo LVMH caem na Bolsa de Paris, abalando a avaliação em 500 mil milhões de dólares, em abril, que lhe conferiu o estatuto de primeiro grupo europeu a atingir este valor.

Todos os negócios do LVMH aumentam a dois dígitos, exceto os vinhos e as bebidas espirituosas, que têm uma queda de 4% no semestre, com a diminuição da procura do conhaque Hennessy nos Estados Unidos e da joalharia, mas esta em menor escala. A braços com a inflação e com uma recessão à vista, os norte-americanos são determinante nos resultados do semestre nos principais grupos de luxo, para o mal mas também para o bem. Já lá vamos. Sem surpresas, a divisão de moda e de artigos em pele (Louis Vuitton, Christian Dior, Celine, Loro Piana, Loewe e Marc Jacobs) - que representa mais de metade do volume de negócios do LVHM - é a uma das que mais cresce (17%). Mas abaixo do crescimento superior a 20% que é a regra nos dois últimos anos. Acima de 20% aumenta apenas o retalho seletivo (26%), onde se enquadra a cadeia Duty Free Stores nos aeroportos, refletindo a recuperação das viagens internacionais.

Em termos de geografias, o LVMH recupera na Ásia e abranda nos Estados Unidos e na Europa, num negócio muito definido pelas compras dos chineses em turismo fora da China, que afetam mais a Louis Vuitton e a Christian Dior. Outro dos aspetos que pesa nos resultados do LVMH são os investimentos na promoção da divisão de moda e artigos em pele, que quase duplicam face ao primeiro semestre de 2022, ascendendo a €3,5 mil milhões. É sabido que o marketing e os eventos são determinantes nas vendas. Este grupo, curiosamente, faz coincidir a apresentação de resultados com uma grande revelação, que pode funcionar como uma cenoura para investidores: é o patrocinador principal dos Jogos Olímpicos de Paris, em 2024, pagando €150 milhões.

Com as vendas a crescer uns parcos 2%, o grupo Kering compra 30% da Valentino um mês depois de ter adquirido a Creed
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O segundo maior grupo de luxo, o Kering, também faz o ‘dois em um’ na semana de resultados. Um mês depois da aquisição da casa de alta-perfumaria Creed, por €3,5 mil milhões, volta à ação, revelando a compra de 30% da Valentino, por €1,7 mil milhões, e com opção de compra dos restantes 70% até 2028. É a maior transação no luxo este ano, até à data. O Kering não ficará por aqui, uma vez que o negócio com o o Mayhoola, que detinha a Valentino desde 2012, é o primeiro passo de uma parceria mais alargada com este fundo de investimento do Qatar. que não exclui a entrada no capital da Kering.

Crescer por aquisições será uma compensação da falta de crescimento orgânico com as marcas que o Kering já detém, uma vez que o primeiro semestre de 2023 revela-se desastroso. Neste período, as receitas do grupo crescem uns parcos 2%, para €10,1 mil milhões. O maior desastre é na Gucci e aquela que já foi a estrela da companhia recua 1% nos primeiros seis meses do ano, enquanto a Bottega Veneta não regista variações nas vendas e a Saint Laurent sobe 6%. A maior queda (-5%), essa, acontece na divisão que inclui a Alexander McQueen, a Brioni e a Balenciaga, com esta última a refletir nas vendas as suas sucessivas polémicas.

A aquisição dos sapatos Gianvito Rossi é a forma do grupo Richemont crescer para lá das joias e dos relógios
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Outro dos aspetos que é transferido para os resultados financeiros e aquisições recentes é o maior afastamento entre os dois grandes perfis de consumo de luxo (os ultra-ricos e os que têm algum dinheiro), levando ao reposicionamento de marcas e de grupos de luxo. Um deles é o Richemont, muito focado nos relógios e nas joias, mas que no final de julho compra uma posição maioritária na Gianvito Rossi, marca de sapatos fundada pelo filho de Sergio Rossi, ambos ícones nos sapatos sofisticados de salto alto. Contra todas as expectativas, este segmento teve um ressurgimento no pós-pandemia, depois do reinado dos ténis e do calçado para estar em casa.

O grupo Richemont parece ter concertado estratégias com os dois concorrentes (LVMH e Kering), uma vez que divulga a aquisição da marca italiana a coincidir com a publicação de resultados financeiros. Entre abril e junho, o primeiro trimestre do seu ano fiscal, o Richemont cresce 14%, face ao mesmo período em 2022, ascendendo a €5,32 mil milhões. Também este grupo acusa um crescimento negativo nos Estados Unidos (-2%), a recuperação na Ásia-Pacífico (+40%) e o abrandamento na Europa (+11%), onde destaca as vendas em França, Itália e Suíça. Na sua atividade principal, os resultados são mistos: os relógios crescem menos (+6%) face às joias (+19%), apesar (ou por causa) dos aumentos de preços na Cartier e em algumas das marcas de relojoaria. O segmento menos expressivo no negócio, a moda e os acessórios, sobe 5%.

A aquisição da Gianvito Rossi e da Valentino por grandes grupos de luxo indiciam um bom momento para as marcas italianas independentes ou que integram pequenos grupos familiares, focadas num segmento de luxo mais elevado, que valoriza e paga o extra pela qualidade, herança, saber-fazer e exclusividade. As marcas com estas características podem ter desvantagens, por não estarem integradas em estruturas com sinergias e grande capacidade de investimento. Mas isso parece ter as suas vantagens. É que algumas marcas italianas, com resultados apresentados até ao momento em que escrevo esta crónica, reportam subidas de vendas a dois dígitos.

O grupo Ermenegildo Zegna aumenta as vendas em todos os mercados, incluindo os Estados Unidos, que alimentam o crescimento de 23,9%
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No grupo Tod’s, as vendas consolidadas nos primeiros seis meses de 2023 ascendem a €569,1 milhões, um aumento de 21,7% em comparação com o primeiro semestre de 2022. Todas as marcas do grupo e todas as categorias de produtos, sem exceção, registam um crescimento a dois dígitos. O maior aumento é na Roger Vivier (28,4%), com um perfil de calçado semelhante ao da Gianvito Rossi, seguida pela Tod's (21,3%), Fay (19,8%) e Hogan (14,3%). A Grande China (incluindo Hong Kong, Macau e Taiwan) é onde as vendas do Grupo Tod’s mais se expandem (43,2%), à semelhança de outras marcas. Em termos de países, os que mais se destacam são o Japão (19,4%) e a Itália (12,2%), com este último a faturar com o turismo e com o consumo interno. O ‘calcanhar de Aquiles’ encontra-se na América do Norte e do Sul, com uma quebra de 1,8%.

O continente americano não está mau para todos. O grupo Ermenegildo Zegna aumenta as vendas nos Estados Unidos, bem como em todos os mercados, que alimentam o crescimento do grupo no primeiro semestre (23,9%), para €903 milhões. Receitas que refletem a consolidação da Tom Ford International e da Pelletteria Tizeta (empresa de couros) no Grupo Zegna, a partir de 29 de abril de 2023, e o desempenho da Zegna (+17,9%) e da Thom Browne (+11,9%). Esta última ganha visibilidade com o desenvolvimento de uma linha feminina e com o desfile, a 3 de julho, de apresentação da coleção de Alta Costura, em Paris, que celebra o 20º aniversário da marca. Um mês antes, em junho, o Grupo Zegna já tinha dado sequência à estratégia de aquisição de fabricantes de alta qualidade, com a compra, em conjunto com a Prada, de 30% da Luigi Fedeli e Figlio, empresa de referência na produção de fios e malhas.

No grupo Prada, a Miu Miu é a marca que mais cresce (50%) com a ajuda da carteira Arcadie
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A legião de marcas italianas independentes, que se tornam apetecíveis em época de consolidação da indústria do luxo, é engrossada com o Grupo Prada, que cresce 17% no primeiro semestre com vendas totais de €223 mil milhões. O Japão regista o maior crescimento (38%), seguido da Ásia Pacífico (21%), da Europa (20%) e do Médio Oriente (15%), com as Américas a desacelerar, ficando com as vendas estagnadas (0%). Em termos de marcas, o destaque vai para as vendas a retalho da Miu Miu, que crescem 50%, enquanto na Prada sobem 18%. Os aumentos são a dois dígitos em todas categorias de produtos, em particular nos sapatos mocassim Prada e nas carteiras Miu Miu, como os modelos Wander e Arcadie.

Combinar a apresentação de resultados com o anúncio de uma novidade faz igualmente escola no Grupo Prada, que na mesma semana apresenta a Prada Beauty como a estreia em duas novas categorias de beleza (maquilhagem e cuidado com a pele), a partir de 1 de agosto. Mas, se a memória não me falha, a Prada já teve uma linha de beleza, em 2000, descontinuada pouco tempo depois de ter sido lançada. A novidade agora será talvez o fabrico dos produtos em parceria com a L’Oréal, que em 2019 fica com o licenciamento dos perfumes Prada.

A entrada de marcas de moda de luxo no negócio da maquilhagem e dos cuidados com a pele é outra das tendências crescentes desde a pandemia. A Hermès faz esse caminho, mas está a demorar a colher os frutos, uma vez que a beleza (a par com os perfumes) é a divisão com um aumento menor nos primeiros seis meses do ano (8,3%). Este revés, porém, não ensombra a marca que cresce mais sozinha (25%) do que o grupo LVMH com cerca de 75 marcas, faturando um total de €6,7 mil milhões, no primeiro semestre. Axel Dumas, presidente executivo da Hermès, atribui o desempenho aos pilares que sustentam o modelo artesanal da marca: a qualidade dos materiais, o saber-fazer e a criatividade, apoiados no investimento nas capacidades produtivas.

As listas de espera para comprar a carteira Birkin confirmam a força da Hermès, que cresce mais sozinha (25%) do que o LVMH com 75 marcas
Foto Egill Bjarki

A unanimidade na preferência por esta marca de ultra-luxo dá uma ajuda nisto, com a Hermès a crescer acima dos 20% em todas as geografias, incluindo nas Américas, onde alguns concorrentes estão a passar mal. O pronto-a-vestir e os acessórios (+31,8%) é a divisão que mais cresce, seguida de perto pelas joias e artigos para a casa (+29%). Com aumentos mais distantes encontram-se os relógios (+21%), as sedas e os têxteis (+19,4%) e os artigos em pele e as selas (+17,9%). Estes resultados espelham um dos lados do consumo de luxo, que se divide entre quem ganha algum dinheiro mas não é rico e os ultra-ricos com recursos e rendimentos financeiros que se multiplicam.

A Hermès confirma a sua força e modelo de negócio, com as longas listas de espera por determinados produtos, e o apelo da marca em momentos de crises económicas e geopolíticas. A atual tendência do ‘luxo silencioso’, corporizada nos protagonistas da série ‘Sucessão’, coloca a Hermès em vantagem. Apela ao patamar mais elevado dentro do luxo, que opta por clássicos de alta qualidade, que se distanciam das marcas mais massificadas. Estas são as favoritas dos compradores aspiracionais que adoram logotipos evidentes e em abundância, dando saída aos acessórios e às malas, que têm preços inferiores e são passíveis de usar em mais ocasiões do que o pronto-a-vestir ou a alta-costura. Estes têm sido o grande motor de crescimento dos grupos de luxo, mas isto pode virar ao contrário se a crise e a inflação obriga a cortar nas compras. Os alicerces de expansão estão abalados ou este é o novo normal no mercado de luxo, que se torna ainda mais elitista?