Crónicas

Os leilões de luxo estão a ter um momento

Na crónica ‘Sem Preço’, Catarina Nunes reflete sobre os sucessivos recordes batidos em leilões, inclusive com um relógio Omega falsificado, e o 1% da população que os alimenta

As maiores leiloeiras internacionais superam recordes de vendas, com o 1% da população mundial a fazer bater martelos por milhões de euros em arte contemporânea, colecionáveis e excentricidades de luxo. A procura e os preços sobem, alheios (ou graças) à crise, e o primeiro semestre de 2023 apresenta-se como o melhor de sempre, não fosse ensombrado pelo maior pesadelo de leiloeiras e licitadores: as falsificações.

Ainda os resultados financeiros de algumas das principais leiloeiras internacionais não tinham sido revelados, o que acontece esta semana, já os alicerces dos leilões estavam a ser abalados. No início de junho é revelado que o Omega Speedmaster ‘Broad Arrow’, produzido em 1957 e vendido na Phillips por 3,1 milhões de francos suíços (€3,2 milhões), afinal é uma falsificação. O mais curioso é que o ludibriado é a própria Omega, que compra o dito relógio, em novembro de 2021, para o integrar na sua coleção interna. Os peritos das marcas fabricantes também podem ser enganados tal como os colecionadores desavisados.

O Speedmaster ‘Broad Arrow’, o Omega mais caro de sempre vendido em leilão (€3,2 milhões), afinal é falso

O caso envolverá três ex-funcionários da Omega que refizeram este Speedmaster com peças que não eram de origem (o que automaticamente reduz o seu interesse e valor), enganando a leiloeira Phillips com um alegado original sem modificações. O relógio, que acaba por se confirmar ser bom demais para ser verdade, chega a encher páginas de jornais e sites especializados, por ter sido vendido por um preço mais de 25 vezes superior à estimativa mais elevada (€112 mil). Na época é noticiado como o Omega mais caro alguma vez vendido num leilão, mas não é claro se a qualificação lhe foi retirada ou não. Adiante.

Este escândalo é particularmente desestabilizador porque os relógios em segunda mão vêm de um momento anterior, em que os preços estavam a descer com o aumento da oferta. Por outro lado, os relógios - a par com as joias e outros artigos de luxo - são o grande impulsionador das leiloeiras de referência, que há muito diversificam para lá da arte e das antiguidades. A Christie’s anuncia quarta-feira, 12 de julho, os resultados dos avanços no luxo: as vendas de joias, relógios, carteiras e vinhos crescem 43%, totalizando 590 milhões de dólares (€533 milhões), no primeiro semestre de 2023. Neste segmento, a Christie’s destaca a venda de um Patek Philippe de 2015, o ‘Sky Moon Tourbillon’ ref.6002G, por 5,8 milhões de dólares (€5,24 milhões), o relógio mais caro vendido num leilão online.

Foto2- Por €5,24 milhões, o Patek Philippe ‘Sky Moon Tourbillon’ bate o recorde de relógio mais caro arrematado num leilão online
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O digital, aliás, é um dos principais motores das leiloeiras, com a Christie’s a despachar mais de metade dos lotes por esta via, que é também a grande recrutadora de novos clientes, em particular Millennials, que representam 65% dos compradores virtuais. O luxo, por seu lado, é a porta de entrada de novos licitadores e compradores, representado 39% das transações. Não é de estranhar que neste segmento a Christie’s assinale outro recorde. A coleção Single Owner Hermès, que a 28 de junho fecha a terceira parte da venda ‘Inside the Orange Box’ (carteiras, produtos para a casa e acessórios Hermès), com vendas de €1,9 milhões, que ascendem a €5,9 milhões quando combinadas com as duas partes anteriores.

Sendo a Hermès uma garantia de sucesso, um dos leilões mais aguardados em julho, a decorrer na Sotheby’s, é o da carteira Kelly na versão em pele de crocodilo. Um dos modelos icónicos e mais vendido pela marca francesa, a White Matte Niloticus Crocodile Himalaya Kelly 28, de 2020, vai a leilão a 20 de julho em Hong Kong. Herda a denominação das montanhas nevadas dos Himalaias e é feita em pele de crocodilo, com ferragens em ouro branco e 229 diamantes. A Sotheby’s não revela resultados semestrais, mas adivinha-se que sejam em linha com os da principal concorrente (a Christie’s), considerando que é a responsável por alguns dos recordes batidos nos primeiros seis meses de 2023. Em março, transaciona por 34,8 milhões de dólares (€31,5 milhões) o ‘Eternal Pink’, um ultrarraro diamante cor-de-rosa com 10,57 quilates, que é um dos mais valiosos que alguma vez apareceu num leilão.

A icónica Kelly 28 da Hermès em pele de crocodilo, ouro branco e diamantes é leiloada a 20 de julho

Estes resultados com valores astronómicos são o outro lado da covid-19, que se reflete na minúscula minoria que encara os leilões de arte e de raridades como o comum dos mortais faz a lista de compras de supermercado. Por outro lado, bancos de investimento e consultoras têm apontado o segmento de luxo (principalmente carteiras e relógios com elevada valorização em segunda-mão e em leilões) como o melhor investimento anti-inflação, em detrimento da volatilidade das Bolsas. Mas o que está, verdadeiramente, na origem do fenómeno é o aumento do dinheiro disponível entre aqueles que já tinham muito. Um estudo da Oxfam indica que os mais ricos do planeta, os tais 1%, acumulam dois terços da riqueza gerada nos últimos três anos em pandemia, ficando o restante um terço distribuído por 99% da população mundial.

O interesse das novas gerações em colecionáveis e artigos de luxo e a dinâmica dos leilões online, que representam a maioria das licitações e vendas, são outras das forças a ajudar. As quatro grandes leiloeiras (Christie’s, Sotheby’s, Phillips e Bonham’s) não abandonaram as licitações presenciais, com o levantamento da raquete e o bater do martelo. Mas o modelo de negócio está a afastar-se daquele com que começaram no século 18, em Londres, focado em arte antiga e mobiliário. A arte contemporânea, as marcas de luxo e os símbolos da cultura popular, que para os muito ricos tenham um cariz de troféu, estão cada vez mais em alta, sejam os ténis usados por LeBron James ou o Porsche de Diego Maradona, por exemplo.

O ‘Eternal Pink’ com 10,57 quilates (€31,5 milhões) é um dos diamantes mais valiosos que alguma vez apareceu num leilão

É nesta linha que a camisola ‘Ovelha Negra’, popularizada por ter sido usada pela Princesa Diana num jogo de polo em 1981, vai a leilão a 14 de setembro na Sotheby’s, em Nova Iorque. Disponível para licitação online a partir de 31 de agosto, e integrada no leilão Sotheby’s Fashion Icons, a camisola estará exposta na leiloeira a partir de 7 de setembro, a coincidir com o início da Semana de Moda de Nova Iorque. Espera-se que seja vendida por entre 50 mil e 80 mil dólares (€45 mil/€72 mil), segundo estimativas da Sotheby’s.

Este valor não será difícil de alcançar, uma vez que há menos de um mês alguém pagou cerca de 63 mil dólares (€57 mil) por uma mala com um tamanho inferior a um grão de sal e visível apenas no microscópio… mas com o monograma da Louis Vuitton. A ‘Microscopic Handbag’, a mais recente criação do coletivo de criadores ativistas MSCFH, é feita através da tecnologia de impressão 3D e é uma sátira à redução de tamanho das carteiras das marcas de luxo, ao ponto do seu sentido utilitário ser esvaziado, transformando-se num mero símbolo de estatuto.

A camisola ‘Ovelha Negra’ da Princesa Diana vai à praça a 14 de setembro e espera-se que seja vendida por entre €45 mil e €72 mil

Ironicamente, ou propositadamente, é vendida a 28 de junho na leiloeira Joopiter, criada por Pharrel Williams, diretor criativo das coleções masculinas da Louis Vuitton, apesar de a ‘mala para formigas’ ter sido alegadamente criada à revelia da marca francesa. Juntamente com a mala, o comprador também levou para casa um microscópio com ecrã digital, onde a ‘Microscopic Bag’ pode ser apreciada. A título de curiosidade: a mala Louis Vuitton original na qual esta excentricidade se inspira, o modelo ‘On the Go’, custa entre €2.600 e €2.800… em tamanho para pessoas.

É também no território da irreverência ativista que a 29 de junho a Bonham’s anuncia a venda de uma obra de Banksy, um dos pontos altos desta leiloeira no primeiro semestre do ano. O ‘Congestion Charge’ é arrematado por 1,68 milhões de libras (cerca de €2 milhões) e satiriza as multas impostas, em 2003, aos condutores de automóveis que circulem em algumas zonas de Londres, em determinados horários. Este quadro de 2004 adultera uma pintura a óleo de uma paisagem campestre, em estilo Old Master, acrescentando-lhe no canto inferior direito a sinalética presente em artérias londrinas.

Arrematado por cerca de €2 milhões, o ‘Congestion Charge’ de Banksy satiriza as multas impostas aos condutores em algumas zonas de Londres

A obra de Banksy é um dos coadjuvantes para que este seja o melhor primeiro semestre de sempre da Bonham’s, com uma subida total de 32% ou de 20%, caso não se tenha em linha de conta a consolidação com o negócio das quatro leiloeiras que a Bonham’s compra em 2022. Tal como na Christie’s, a entrada de novos clientes são o maior impulsionador das vendas (mais 45%), com as compras das gerações Z e Millennial a aumentar 147%. Além da expansão através da aquisição de leiloeiras nos Estados Unidos, países nórdicos e Franca, a Bonham’s cresce ainda 132% nas transações online. Avizinha-se o fim dos leilões presenciais. Ou não há nada como a adrenalina da ‘dança’ das licitações com o levantar da raquete e o culminar com o som da batida do martelo?