Mariana Mortágua é a nova coordenadora do Bloco de Esquerda. O rosto é o que se esperava, faltava saber a dimensão da vitória, que foi estrondosa. A moção A, encabeçada por Mortágua, que define a estratégia para os próximos dois anos, teve 439 votos, dos 654 delegados da Convenção. E a lista que apresentou à Mesa Nacional, o órgão máximo do partido entre convenções, alcançou 67 dos 80 lugares (mais de 80%).
“A nossa política é uma paixão maior do que qualquer circunstância, é uma vontade que ninguém pode domar”, atirou Mortágua, no primeiro discurso enquanto líder do partido, logo após terem sido conhecidos os resultados. Perante um pavilhão cheio, no Casal Vistoso, em Lisboa, avisou. “Os nossos 24 anos, estas treze Convenções e esta sala cheia são só o começo do Bloco de Esquerda.”
Com estes resultados, a nova liderança do partido, que é de continuidade face à anterior, de Catarina Martins, consegue aumentar o peso na direção bloquista - Catarina Martins acabou com 54 dos 80 lugares na Mesa. Em sentido contrário ficou a moção E, a ala crítica, que perdeu espaço e, dos 17 lugares que tinha, acabou agora com 13 (desta vez, houve apenas duas listas concorrentes, ao contrário do que aconteceu em 2021).
“Desgaste da vida democrática não é só provocado pelos arruaceiros”: Mortágua atira ao PS
O primeiro discurso da coordenadora foi feito de sorriso rasgado, sobretudo quando falou para dentro, mas também de rosto fechado, quando disparou contra a maioria absoluta e contra a direita, em particular à “política do ódio”. “A essa direita”, apontou, “dizemos que Portugal não será o país onde espancam imigrantes nas fronteiras e em que se multiplicam Odemiras”, “não será um país sem serviços públicos de saúde e educação, como propôs o Chega”, “não será um país sem salário mínimo nacional, sem escolaridade obrigatória até ao 12º ano”.
Mas não era o Chega o principal alvo da mensagem. “O desgaste da vida democrática não é só provocado pelos arruaceiros que gritam contra ela. É criado por quem descredibiliza a República." E a partir daí começou o tiro ao PS.
A intervenção teve mais de meia hora e a maioria absoluta, cujo “pântano não está a defender a democracia”, foi onde Mortágua mais se demorou. “Um tormento de degradação e instabilidade”, um “embaraço nacional”, disse.
A mensagem não podia ter chegado de forma mais direta ao destinatário. A assistir nas primeiras filas estavam algumas figuras do PS, como António Mendonça Mendes, o secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, João Torres, secretário-geral adjunto do PS, e Marta Temido, líder da concelhia do PS em Lisboa. Havia outros convidados na sala, como Isabel Camarinha (secretária-geral da CGTP), mas foram aquelas que Mortágua encarou.
Além do Governo como um todo, Mortágua referiu-se a um socialista em particular, que não estava na sala, chamado João Galamba. O PS do “poder absoluto” “só está preocupado em sobreviver ao dramalhão do 4º andar do Ministério”, disse a nova líder, referindo-se aos episódios no Ministério das Infraestruturas, que se seguiram à demissão do adjunto de Galamba. Minutos antes, Pedro Filipe Soares tinha feito a plateia rir quando disse que Galamba se deve olhar ao espelho e perguntar: “espelho meu, espelho meu, haverá ministro mais incompetente do que eu?”
“As patologias do poder transformaram a política num entretenimento triste”, continuou Mortágua, sobre as polémicas que envolveram o ministro e o andamento das comissões de inquérito à TAP, que o Bloco propôs. A resposta do Governo, afirmou, é “o medo”. “Ao medo do fim do mês [o PS pede] que juntem o medo de que este Governo, que é mau, dê lugar ao péssimo”. As críticas multiplicavam-se, bem como a repetição da ideia, apontada por vários dos principais dirigentes, de que o PS usa essa ameaça de um Governo que junte toda a direita como forma de sobrevivência.
Com espaço para uma breve leitura positiva sobre a geringonça, Mortágua disse que é tempo de “a esquerda saber olhar para o essencial”. E o essencial são “as urgências hospitalares a fechar”, as “crianças sem aulas", “as promessas de casas nunca construídas", o “mais de um milhão e 700 mil pessoas [que] vivem com menos de 554 euros por mês”.
O discurso deixou pistas sobre a estratégia do Bloco para o próximo ciclo político, que vai também passar por lembrar a frase que se colou à pele de Luís Montenegro, hoje líder do PSD, durante o tempo da troika - “a vida das pessoas não está melhor, mas o país está muito melhor” - e colá-la, numa nova versão, à pele de António Costa.
É por isso que, enquanto o Governo acenar com os resultados económicos e os números do défice, o Bloco vai chamar-lhe “logro”. “O milagroso crescimento económico português é um logro”, porque “há milhões de pessoas presas na dívida da casa, presas no salário baixo, presas no contrato precário, presas nos turnos e no trabalho sem fim, presas ao cuidado informal, presas na ansiedade e na solidão.” Reivindicando a imagem que cultivou enquanto deputada, Mariana Mortágua disparou aos que “ganham” neste “tempo de incertezas”. “O patrão” que ganha “nuns meses o que um trabalhador não consegue ganhar numa vida inteira de trabalho”, a banca que “precisa dos seus 10 milhões de lucros por dia”, as distribuidoras com “recorde de lucros”, “a rédea solta” do turismo e do imobiliário.
Ser “terceira força” nas Europeias e a proposta de “vida boa”
Mariana Mortágua traçou ainda objetivos para o seu partido, o primeiro é um bom resultado nas eleições da Madeira. “Haverá uma oposição que leva a sério a vida dos madeirenses, a pobreza, a habitação, a saúde. Essa oposição será a força do Roberto Almada, no Parlamento da Madeira a partir de outubro”. Depois, o partido quer ser a “terceira força” nas eleições europeias, em 2024. “Chegaremos às eleições europeias com o entusiasmo e a determinação de sermos a terceira força para ultrapassar o Chega e a IL”, garante. A nova líder traça como estratégia europeia combater a “austeridade” de “Bruxelas e Frankfurt” e defender o “acolhimento fraterno de exilados, refugiados e imigrantes”.
O chavão da “vida boa” foi repetido por oito vezes ao longo do demorado discurso e será materializado no “programa” do partido. “Temos o direito e até temos o dever de lutar por uma vida boa, uma vida que não seja consumida num esforço inglório pelos mínimos dos mínimos: uma casa, salário decente, ter cuidados. Cuidados na doença, quando tivermos filhos, quando a idade pesar aos nossos pais, quando a idade nos pesar a nós. É exigir demais?”, perguntou ironicamente enquanto reunia o apoio da plateia. Este compromisso com a “vida boa” é a “resposta clara" ao “vazio ideológico corrosivo” dos partidos da oposição que "não sabem para onde vão e não querem ir para lado nenhum".
À semelhança daquilo que fez desde que anunciou a sua candidatura à direção do Bloco, Mariana Mortágua tentou colar a sua imagem de “radical” a vontades como querer “uma economia que caiba nos limites naturais do nosso planeta”, “exigir para os imigrantes” as “mesmas regras que queremos para nós mesmos” ou simplesmente “fazer música e teatro, querer dançar e viver”. "Quando o mais elementar bom senso parece radical, então é porque é altura de ter bom senso", defendeu.
Como seria de esperar, Mariana Mortágua dedicou também palavras a Catarina Martins que apelida como “força imparável”. “A Catarina provou ser a melhor de todos e todas nós”, reiteirou. Depois de reclamar algumas das conquistas do Bloco - da tributação dos “patrimónios milionários” à luta pelo SNS - Mariana Mortágua defendeu também a continuidade da ex-líder no partido. “Foram anos incríveis de coragem e de convicção e podes ter a certeza que contamos contigo, Catarina, para os próximos que hão-de vir”, afirmou entre fortes aplausos.
Num tom mais pessoal, Mortágua lembrou ainda a “garra alentejana” que carrega nas suas origens e a “sorte” em “partilhar um percurso político” com Joana Mortágua, deputada do Bloco. Sobre o seu pai - uma figura conhecida do 25 de Abril e, muitas vezes, utilizado como arma de arremesso contra as Mortágua -, a nova líder fala em “orgulho” e na herança de uma “memória de resistência contra a ditadura”.