A uma semana do primeiro dia D do Orçamento, António Costa afrouxa a ameaça de crise política, mas aperta a retórica à esquerda sobre o Orçamento do Estado para 2021. Na véspera de nova ronda de negociações à esquerda, o primeiro-ministro quer passar a mensagem que não quer "governar aos bochechos", mas não sairá se este for chumbado: "Não viro as costas ao país neste momento de crise e tudo farei para poupar o país a qualquer tipo de crise", disse em entrevista à TVI. Por outro lado, vai dizendo a BE e PCP que não entende como podem ter uma "oposição global" ao documento e que não é preciso que aprovem, só que não o chumbem.
Esta mudança subtil nos apelos à esquerda tem importância na decisão sobre a votação do documento. António Costa deixou de lhes pedir que aprovem - apesar de repetir não entender porque não o fazem - e insiste numa mensagem que tinha já ensaiado no fim de semana: "A conta da aprovação é muito simples, o PS sozinho tem mais 22 deputados que a direita toda junta. O Orçamento só chumba se o PCP e o BE somarem os seus votos à direita. Se o PCP e BE somarem aos votos da direita, se não somarem, o Orçamento não chumba". E repete: "A questão fundamental do ponto de vista político, é saber: querem somar à direita ou não se querem somar à direita e chumbar o orçamento?", pergunta.
A pergunta não é inocente. Não o dizendo claramente, fica implícita na questão do primeiro-ministro um episódio do passado mal resolvido à esquerda: o chumbo do famoso PEC4 do Governo de José Sócrates, em 2011, que levou à queda do governo socialista e à vitória do PSD. Mas também a uma queda do BE, que viu a sua bancada bastante reduzida.
É neste tabuleiro de uma crise política indesejada, que não traria vencedores à esquerda, que António Costa joga. E nesta entrevista à TVI insistiu na ideia que a pandemia não dá tréguas e que é preciso este orçamento para lhe dar resposta, não querendo governar em duodécimos: "É essencial não andar a governar aos bochechos", disse. Para isso não acontecer, precisa que o Orçamento passe e tal pode acontecer sem o voto do BE. Questionado várias vezes sobre se admitia que o documento passasse sem os bloquistas, Costa contornou sempre a individualização do partido de Catarina Martins, dizendo que "deseja" ter o voto de todos os partidos à esquerda e também do PAN. "Se os outros quiserem também não lhes peço para irem votar contra", ironizou, mas, insistiu "o sentido das negociações é com os que têm sido os nossos parceiros".
Já na semana passada, António Costa tinha usado a fórmula de dizer que "não compreendia" como poderia a esquerda não viabilizar este orçamento, em entrevista ao Público. Agora, na TVI, reforça esta ideia: "Tenho dificuldade em compreender como é que à esquerda há uma oposição global a este Orçamento. Eu não compreenderia, o país não compreenderia", insiste. E garante que não está a pedir "um cheque em branco" uma vez que a proposta de Orçamento "já reflecte algum do fruto do diálogo" com os vários partidos.
Contudo, lembraram os entrevistadores, a esquerda insiste que é insuficiente. "Além da retórica política, não vejo onde possa haver divergências", disse. Por isso, garantiu vai "fazer esse esforço até ao limite do razoável". Um limite difícil de calcular, mas que se cifra no equilíbrio entre receitas e despesas que não torne o Orçamento "inexequível" ou "insuportável para o futuro".
As conversas com estes partidos aconteceram sobretudo com o OE em cima da mesa, apesar de o Governo ter referido de início que lhe queria associar um compromisso para a legislatura. Costa revela que foi uma tentativa sem frutos e que nem conseguiu negociar com estes partidos o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), o plano para usar os fundos de Bruxelas. "Nenhum dos partidos mostrou qualquer vontade de negociar o programa de recuperação. Ninguém quis negociar connosco", disse. Ainda há margem para o fazer, mas "limitada" dado que o PRR já foi entregue em Bruxelas.