O “humor cáustico” é um dos traços de José Cutileiro que o embaixador e ex-ministro dos Negócios Estrangeiros António Martins da Cruz recorda em declarações ao Expresso. Trabalharam juntos em várias ocasiões, nomeadamente quando o diplomata falecido este domingo era secretário-geral da União Europeia Ocidental (UEO) e Martins da Cruz era assessor diplomático do então primeiro-ministro Cavaco Silva. Foi na altura da desintegração da Jugoslávia, que Cutileiro evocou num dos seus livros tardios, “Abril e outras transições”.
“Era um humor que lhe era permitido pelo facto de não acreditar em nada, por vezes chocava, são disso exemplo os ‘Bilhetes de Colares’”, lembra Martins da Cruz, referindo-se às crónicas que Cutileiro publicou em vários títulos da imprensa portuguesa nos anos 1980 e 1990, com o pseudónimo A.B. Kotter, imaginário aristocrata inglês instalado numa quinta da Várzea de Sintra com um olhar tão lúcido quando impiedoso sobre Portugal. Martins da Cruz compara a acutilância do autor à de Alexandre O’Neill ou Luís Sttau Monteiro.
Apesar do tal tom “cáustico”, diz, Cutileiro era “afável, com um toque muito humano e pessoal”. Martins da Cruz viu-o pela última vez “há três meses, no Grémio Literário”, tendo conversado com o colega e ficado impressionado com o seu estado fisicamente debilitado.
Destaca a ligação que Cutileiro sempre manteve com Portugal e, sobretudo, com as raízes alentejanas. O tema da sua tese de doutoramento em Antropologia foi, aliás, “Ricos e Pobres no Alentejo” (1970). “Apesar de ser um homem internacional, de ter passado por vários continentes e de ter exercido várias profissões, nunca se tornou ‘demasiado internacional’, como por vezes sucede aos diplomatas e os afasta dos seus países.
Cutileiro, que cursou Medicina sem concluir antes de tirar Antropologia, fizera parte da escolaridade no liceu francês de Cabul (Afeganistão), conta Martins da Cruz. O seu pai, médico, fora ali colocado pela Organização Mundial da Saúde. “Tinha saído de Portugal por motivos políticos”, recorda, pois o progenitor, com o mesmo nome do filho, era opositor da ditadura de Salazar. “Nada faria crer numa carreira diplomática”, considera Martins da Cruz. Sublinha ainda “a grande amizade e sentimento de proteção” que o agora desaparecido nutria pelo escultor João Cutileiro, seu irmão mais novo.
O antigo ministro dos Negócios Estrangeiros conta um episódio passado em Bruxelas, onde Cutileiro faleceu e onde viveu vários anos com a sua atual mulher, de nacionalidade francesa. Então embaixador na capital belga, Martins da Cruz ofereceu um jantar em honra do Presidente da República Jorge Sampaio, que estava de visita. Cutileiro, então na União da Europa Ocidental, foi um dos cerca de 25 convidados. “No final, voltou-se para Sampaio, de quem era amigo, e que também tinha pai médico, amigo do de Cutileiro. E disse-lhe: ‘Ó Jorge, se os nossos pais nos vissem agora, que haviam de dizer ao ver que tu chegaste onde estás e eu cheguei onde estou?’.”