Política

José Cutileiro, o embaixador que testemunhou a mudança do mundo

Falecido este domingo, 17 de Maio, aos 85 anos, José Cutileiro seguiu a carreira diplomática, o que lhe permitiu assistir na primeira fila ao fim do apartheid ou à desagregação da Jugoslávia

José Cutileiro
António Pedro Ferreira

Uma invejável capacidade analítica e uma prosa camiliana, eis como em duas palavras se poderia descrever o embaixador José Cutileiro que nos deixou este domingo, dia 17 de Maio, aos 85 anos, em Bruxelas, cidade onde residia nos últimos anos e onde estava a ser tratado de doença prolongada.

Não tendo seguido o caminho canónico para ingressar na carreia diplomática, acabou por lhe dedicar boa parte da sua vida, a partir de 1974, quando se tornou conselheiro cultural da embaixada portuguesa em Londres. Um caminho de alguma forma facilitado pelos périplos do seu pai, também José, pelo mundo, uma vez que as posições de oposição deste ao salazarismo lhe tornavam quase impossível trabalhar como médico em Portugal.

Ricos e pobres no Alentejo

Foi em Londres que em 1971 publicou a versão longa de um estudo, depois condensado em livro, que ainda hoje é estudado nos cursos de Antropologia: “Ricos e Pobres no Alentejo”. Uma investigação antropológica cujos levantamentos no terreno decorreram entre 1965 e 1967 que analisa entre outras coisas, como uma concepção fatalista do mundo – a de que sempre houve ricos e pobres e cada um é para o que nasce – está profundamente enraizada no campesinato alentejano e condicionou a politização de quem nasceu no campo e sempre trabalhou de sol a sol.

Logo nas primeiras páginas deste trabalho revela-se um traço que acompanhará pela vida fora os escritos do futuro embaixador Cutileiro. Um pouco à maneira da tese de Eça de Queirós sobre o romance, revestindo a nudez forte da verdade há um manto de ironia nem sempre cosido até ao último ponto. O concelho que Cutileiro observou não é nomeado, sendo referido pela designação imaginária Vila Velha.

Uma opção que o autor explica sem hesitações: “As pessoas reais e os lugares exactos, os nomes das herdades, dos que as exploram, dos que lá trabalham são irrelevantes para a interpretação”. Ou seja, identificá-los seria tão irrelevante, como saber “em que cidade da província francesa e exactamente com que farmacêutico era casada Madame Bovary”.

Os Bilhetes de Colares

Mais tarde levará esta visão das coisas às últimas consequências, ao publicar a partir de 1982, primeiro no “Semanário” e depois no “Independente”, os “Bilhetes de Colares”, ou seja crónicas escritas por um heterónimo seu chamado Alfred Barnaby Kotter e que um criado deste teria traduzido para português e revelado ao mundo. Por aí passa uma visão corrosiva do Portugal pós revolucionário que alguns tomaram por textos originais de um aristocrata britânico, arrogante e reaccionário q.b. (posteriormente editados pela Assírio e Alvim).

Tendo acedido ao cargo de embaixador em 1978 vai representar Portugal No Conselho da Europa e depois em Maputo. Mas o seu primeiro grande contacto com um mundo em mudança acelerada ocorrerá quando for transferido para Pretória e testemunhar a libertação de Mandela, o fim do apartheid e uma caminhada para a normalização democrática num país que parecia condenado a um banho de sangue.

SOS Jugoslávia

Em circunstâncias não menos empolgantes mas seguramente mais dramáticas, acompanhou o processo de desagregação da Jugoslávia, como secretário-geral da União da Europa Ocidental (a partir de 1994), organização que deveria corresponder no plano militar ao que política e economicamente era a União Europeia. Numa guerra civil atroz na Bósnia (1992/5) onde a intervenção da ONU, muito baseada em forças europeias, se revelou insuficiente e necessitou do músculo militar norte-americano, salvou-se a participação portuguesa na Missão de Paz na Bósnia, a primeira operação diplomática e militar lusa no estrangeiro desde 1918.

Posteriormente e à medida que se desenhava o abandono da vida diplomática activa, Cutileiro começou a passar a escrito as suas reflexões. Foi o caso, entre outros de “Abril e Outras Transições” (2007) talvez o livro que melhor resume a forma como o mundo mudou em pouco mais de duas décadas. Publicava semanalmente crónicas no Expresso, uma de política internacional (O Mundo dos Outros) e outra num registo necrológico (In Memorian), mantendo esta última praticamente até ao fim dos seus dias. Era também frequentemente solicitado para comentários radiofónicos sobre a actualidade internacional em especial na Antena 1, missão que cumpria com a visão informada, crítica e às vezes desiludida de quem vira o Muro de Berlim cair mas nascerem mais ou menos na sombra outras opressões e desigualdades.

Nascido em Pavia, distrito de Évora, em 1934, era irmão do escultor João Cutileiro, três anos mais novo.