Conversar com Miguel Guilherme é sempre uma renovada e vibrante surpresa, porque ele é generoso a falar de si e da sua arte e não é de tretas, de poses, de snobeiras bacocas, de máscaras ou de discursos ensaiados, postiços e balofos. E isso é sempre uma maravilha de escutar e algo raro. Além disso, Miguel Guilherme não tem medo da sombra, do erro, da falha, da dúvida, e é bom percebermos que a sua bela e farta cabeleira branca não lhe retirou curiosidade, fome de saber, e frescura e capacidade crítica sobre si e sobre o país, o mundo e os outros. O seu currículo é extenso, e muito variado e completo, onde se somam inúmeros sucessos no teatro, no cinema, na televisão, na rádio e na publicidade.
Passaram 5 anos desde que o Miguel veio a este mesmo podcast. Nessa altura chegou a afirmar “Sem cultura, nós transformamo-nos nuns animais. E nós, portugueses, estamos meio cá meio lá…” E, pelo meio, deixou uma crítica a António Costa que considerou um bom político, mas algo distraído quanto ao apoio dado à Cultura. Passado este tempo, Miguel refaz a frase e o discurso. Retira da equação os animais, que nada têm a ver com a discussão, e considera que a mudança faz-se no coletivo: "Acredito que a arte tem que existir por si, pela vontade de fazer, e quanto mais forte for o impulso artístico, mais o Estado e a sociedade reconhece esse impulso. Mas, por outro lado, a pandemia pôs a nu a precariedade na classe artística e no meio audiovisual. Defendo que as pessoas têm que se organizar em sindicatos e associações, devem fazer o balanço do que está mal e reivindicar coisas em coletivo."
Miguel considera que o passado persegue-nos a todos, invariavelmente. E neste “conta-me como foi” e conta-me como será, o ator revela as ferramentas e a narrativa que tem usado para perspetivar e avançar sem ficar agarrado aos erros do passado. E fala ainda da importância do erro na sua arte.
De volta aos palcos, Miguel Guilherme contracena com a atriz Luísa Cruz, no espetáculo “A Peça Para Dois Atores”, do dramaturgo norte-americano Tennessee Williams, com encenação de Diogo Infante e que está em cena no Teatro da Trindade, em Lisboa, de quarta a sábado até 25 de junho. Visivelmente entusiasmado com este regresso, chega a afirmar: “Preciso sempre de voltar ao teatro. Senão não me sinto confortável na minha pele. Adoro a relação que se estabelece entre o público e os atores no teatro, pela proximidade e respiração em conjunto na sala. No fundo é uma assembleia. É um corpo único de pessoas num espaço. Quando sentes que está toda a gente a respirar no público da mesma maneira é uma boa noite de teatro”
Recorde-se que “A Peça Para Dois Atores” foi levada a cena pela primeira vez em 1967, em Londres, e na época foi considerada pelo próprio criador como a sua peça mais bonita desde “Um Elétrico Chamado Desejo”. Nesta trama, um homem e uma mulher, irmãos e atores estrelas em final de uma digressão demasiado longa, são abandonados pela restante companhia, que os acusa de estarem loucos, e vêem-se forçados a representar uma peça em que os dois irmãos são as próprias personagens da peça que representam. À medida que a peça dentro da peça se desenrola, a linha entre a realidade e a ilusão torna-se cada vez mais ténue e os irmãos são obrigados a lidar com os seus próprios fantasmas, num jogo trágico-cómico que os conduz ao limite. E aqui se fala de saúde mental, de confinamento forçado, e da linha ténue, por vezes perigosa entre a ficção e realidade, entre a verdade e a mentira. Representar é falar a verdade a mentir, como o título de uma das peças de Almeida Garrett? Miguel Guilherme é rápido e eficaz na resposta que podem ouvir na primeira parte deste podcast.
O ator revela ainda que detesta a competição na sua profissão:
"A ideia da competição para mim é abjeta, desinteressa-me, talvez porque sempre fui muito inseguro. A ideia de fazer melhor do que os outros ou de os ultrapassar nunca caiu bem comigo. Às vezes vejo pessoas assim, mas sou mais de cooperar, de ouvir o outro, e assim vou buscar o melhor no outro e isso eleva-nos. É assim que eu gosto de representar e é assim que acho que devia ser na vida. Mas infelizmente não é assim, porque há muitas paranoias."
E ainda surge um depoimento de Diogo Infante, junto com um desafio e outro da sua amiga e cúmplice de tantos palcos, a atriz Rita Blanco.
Nesta segunda parte da conversa, o ator Miguel Guilherme é logo questionado se se vê como um cacto, e se pica quem lhe chega perto. A dica foi-nos dada por Rita Blanco. E, nesse caminho, Miguel conta-nos como foi que surgiu essa sua paixão e hobbie por estas plantas do deserto, que o levou a abrir uma banca como florista no mercado do Príncipe Real. E depois revela o que gostaria de ter feito na vida que ainda não fez ou que ainda quer fazer, os medos que perdeu e as notícias da atualidade mais o inquietam.
E ainda há espaço para a literatura, num momento imperdível quando Miguel lê de forma sublime um poema de Ricardo Reis, e depois dá-nos música e sugere leituras para este verão. E entre portas e travessas fala-se das vantagens da maturidade, do sexo na idade madura e do horizonte que o ator deseja para a sua vida.
Como sabem, o genérico é uma criação original da Joana Espadinha. Os retratos são da autoria de José Fernandes. A sonoplastia deste podcast é do João Ribeiro e teve o apoio em estúdio de João Martins.
Terminamos aqui esta temporada de conversas. Voltamos em setembro com mais convidados e convidadas especiais. Até lá, já sabem: pratiquem a empatia, boas escutas e boas conversas!