A Beleza das Pequenas Coisas

Madalena Sá Fernandes (parte 1): “Tenho quase um doutoramento sobre machismo. É-me tão familiar”

Cresceu num ambiente de violência doméstica com um padrasto agressor, tema que atravessa o seu primeiro livro, “Leme”, editado em 2023, num registo de autoficção. Esse romance tornou-se um fenómeno de popularidade: já vai na 8ª edição, foi traduzido no Brasil e chegará também à Dinamarca e à Argentina. Em 2024, Madalena Sá Fernandes publicou “Deriva”, uma compilação de crónicas, que lhe permitiu revelar um lado mais humorístico sobre o quotidiano. De momento, a escritora está a terminar um mestrado, prepara um livro para crianças, motivada por ser mãe de duas meninas de 6 e 7 anos, e escreve um novo romance, que terá um lado ensaísta e autobiográfico, sobre a experiência da violência na pele enquanto mulher adulta. “Tenho procurado transformar o que dói em linguagem, e encontrar aí sobrevivência e, idealmente, beleza.” Ouçam-na nesta primeira parte da conversa com Bernardo Mendonça

No seu romance de estreia “Leme”, a escritora Madalena Sá Fernandes conta num registo de autoficção a violência que sofreu e testemunhou durante uma boa parte da sua infância.

Uma obra importante, corajosa, com uma escrita limpa, escorreita, aguçada, mordaz - e nada moralista ou simplista - que vai ao osso e até ao sítio onde as coisas mais doem e abanam e marcam, ao mostrar as matizes do mal e de como a violência doméstica tem na intimidade de uma casa a sua armadilha perfeita, de onde tantas vezes parece não haver saída.

Este seu livro já vai na 8ª edição, agora também editado no Brasil. E, em setembro, sairá na Dinamarca, onde também irá lançá-lo, assim como na Argentina


Matilde Fieschi


Um romance escrito para suturar as feridas do passado com as armas da literatura, caminho paralelo ao da psicanálise.

E entre a biografia e a ficção, Madalena Sá Fernandes mostra-nos ao longo destas páginas o forro da máscara de um vilão, de um agressor, que é ao mesmo tempo charmoso, sofisticado, elegante, um professor e artista plástico respeitado, mestre das boas maneiras à mesa, mas que no avesso da pele, no espaço doméstico, se revela uma perfeita besta, o rosto da violência, da perversidade, da brutalidade.

Matilde Fieschi

Curioso e interessante é lermos neste livro como estas figuras abusadoras e violentas nos provocam sentimentos ambivalentes e contraditórios. Tanto atraem como repelem. Tanto maltratam, humilham, magoam, como, noutros momentos, cuidam e até forram cadernos de escola de forma irrepreensível. O que torna mais confusa a relação.

Consta que Madalena tomou uma frase de Ernest Hemingway como a faísca inicial para a escrita deste romance: “Escreve de forma clara e limpa sobre o que dói”.

Matilde Fieschi

E Madalena soube fazê-lo de forma brilhante, para fechar de forma dura e clara o que dói num livro que não é só sobre sombra, medo e dor, mas tem também muita luz, força, resistência, ousadia, cabeça erguida, esperança e alegria de viver.

Um livro que também nos recorda que a falha e a imperfeição faz parte da vida normal, da humanidade, e do perfeito equilíbrio das coisas e que o perfeccionismo extremo e obsessivo é a linguagem e a razão de um perfeito louco.


Matilde Fieschi

Neste seu “Leme”, além de Hemingway, há várias outras citações de grandes nomes da literatura, como Virgínia Woolf, Clarice Lispector ou Margaret Atwood.

Mas há uma que ressoa em particular, precisamente a de Atwood, sobre uma realidade ainda muito expressiva no nosso país, onde a violência doméstica é ainda tão gritante, e tantas vezes calada, apesar de ser um crime público desde 2000:

“Os homens têm medo de que as mulheres se riam deles. As mulheres têm medo de que os homens as matem.”


Matilde Fieschi

Madalena chega a refletir sobre esta frase, e sob os padrões que se podem repetir nas vítimas destes casos. O que acabou por acontecer consigo mais tarde.

Mas há um mar de outros assuntos por onde esta conversa navega, como o facto da Madalena ter crescido entre as ondas e os livros.

E que, apesar dos momentos traumáticos, Madalena é desde pequena energética, solar, quase hiperativa, adepta do surf e do Verão. A própria guarda a ideia de que teve uma infância feliz: rodeada de amigos, de curiosidade e de uma vontade grande de viver.

Madalena conta o que a levou a estudar Línguas, Literaturas e Culturas, e o que a levou a ir para o Rio de Janeiro estudar. Era suposto ter ficado quatro meses, mas acabou por ficar quatro anos.

E lá mergulhou na literatura brasileira, nas crónicas, no skate, na vida de improviso, na cidade maravilhosa, cheia de encantos mil.

Foi no Brasil que Madalena terminou a licenciatura, e também de lá que regressou em 2017.


Nesse ano, com 23 anos, engravidou da primeira filha e, no seguinte, da segunda. Hoje é mãe de duas meninas de sete e seis anos.

Madalena Sá Fernandes começou a publicar crónicas em 2020, no jornal Público, e em 2023, lançou o seu “Leme”, pela Companhia das Letras.

Um ano depois, em 2024, publicou “Deriva”, uma compilação das crónicas, que permitiu segundo Madalena “aliviar” um pouco os ânimos depois de Leme; e revelar um lado seu mais humorístico que também lhe agrada.

E este seu jeito aparentemente leve de viver, e a sua boa relação com o corpo e com o espelho, apesar dos temas pesados sobre os quais tem escrito, levaram-na recentemente a ser alvo de críticas machistas. Inclusivé de supostos críticos literários, Pessoas que julgam haver um rosto para a violência doméstica e uma forma de estar triste e pesarosa na vida para todo o sempre depois disso.

Madalena comenta sobre os comentários machistas de que foi alvo, e como lhe despertaram fantasmas antigos. “Conheci o machismo durante toda a minha vida.”

De momento, Madalena vive no Estoril, perto do mar, com as suas filhas. Está a fazer um mestrado em Estudos Comparatistas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e trabalha no seu próximo livro, para o qual recebeu uma bolsa da DGLAB.

E aqui revela como a escrita passou a ser o seu centro, e talvez o seu leme: entre dias de silêncio absoluto, em que chega a passar dois dias sem ouvir a sua própria voz, como acabou de acontecer.


Matilde Fieschi

E dá conta de como com a maternidade, o quotidiano e os trabalhos paralelos, esta conquista de horas de solidão é sempre difícil, desafiante, quase clandestina.

E diz escrever contra o relógio, contra o ruído, contra a dispersão, e que cada parágrafo exige uma negociação com a vida prática.

É por isso que valoriza tanto os intervalos de silêncio, os retiros improvisados, a possibilidade rara de estar só a namorar com o texto, com uma frase, ou uma palavra.

E aqui traduz como tem procurado transformar o que dói em linguagem, e encontrar aí sobrevivência e, idealmente, beleza.

A escrita para Madalena é mais do que cura, é uma forma de se entender a si e aos outros?

A conversa começa por aqui.

Matilde Fieschi

Como sabem, o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de Matilde Fieschi. E a sonoplastia deste podcast é de João Luís Amorim.

A segunda parte desta conversa fica disponível na manhã deste sábado.

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