Escrever e reflectir sobre a emoção numa época em que andamos obcecados pela razão (e em que buscamos auxílio na IA para perpetuarmos a nossa razão) pode parecer um tema menor. Penso que não o é. Cada vez mais, abdico de ter razão para ser trespassada pela emoção (sim, é este o movimento que opera em nós a emoção), mesmo que esta seja a do medo do erro.
O filósofo e historiador de arte Georges Didi-Huberman publicou, em 2013, um ensaio sobre a emoção e o espanto (Que Emoção! Que Emoção?, que se encontra publicado em Portugal pela KKYM), que ajuda a compreender a importância e a manifestação dos mesmos. À semelhança do ensaio do autor francês, começo por recordar a relação com a emoção da infância. Do primeiro choro do nascimento, que não recordo, inevitavelmente de dor e de espanto, ao choro por estar triste, zangada, revoltada com algum acontecimento. Em crianças, chorávamos quando nos apetecia, até porque não distinguíamos as emoções, o choro ou riso ainda não tinham sido catalogados pela hierarquia do que era ou não socialmente aceitável.
Vi recentemente um meme na internet que mostrava uma pessoa a chorar e a frase "Não use o seu tempo de lazer para chorar. Chore no trabalho". Os memes são para nós, muitas vezes, uma espécie de epigramas da Grécia Antiga, que concentram em duas linhas um saber simples. Quem disse que não podemos chorar no local de trabalho? Mas já viram se, ao entrarmos num gabinete para uma consulta médica de rotina, nos deparássemos com um profissional de saúde curvado em lágrimas ao telefone? Seria imediatamente destituído de confiança, força e estabilidade emocional, características que associamos a expressões neutras ou a uma expressão de bem-estar generalizado. A emoção do choro desestabiliza tanto uma pessoa ao nível das suas acções como as gargalhadas, mas talvez não nos passasse pela cabeça pôr em causa o dito profissional se ao entrarmos no gabinete este estivesse ao telefone a rir desbragadamente.
Mas voltemos ao choro (tristeza) e ao riso (alegria) da criança, a essas manifestações polarizadas, puras, sejam de medo, frustração, raiva, alegria, tudo aquilo que as emoções expressam, para percebermos a importância libertadora, filosófica, que estas operam na nossa vida. Porque perdemos a capacidade de as expressarmos ao longo da vida? Obviamente porque somos desde cedo constrangidos a não o fazer publicamente, sobretudo a tristeza.
Trabalho com actores há muitos anos, gosto de dirigir actores porque talvez sejam as pessoas que permitem, tal como as crianças, o acesso ao material bruto que constitui um ser humano, às suas emoções. Para mim, é como observar um ser humano ao microscópio, embora não possua a objectividade de um cientista — nem é esse o propósito —, e acontece por vezes emocionar-me, espantar-me, com a beleza das emoções, que podem ser assustadoras, sublimes, e que vejo nascer no «outro» diante dos meus olhos. Como dizia Artaud, “o actor é um atleta das emoções”, e é mesmo, porque se permite entrar numa ficção para mexer no material mais precioso que traz dentro de si, as suas emoções. É um atleta porque o faz sem o perigo do arrastamento para a sua vida depois dos ensaios, depois do espectáculo. Os actores sabem usar o isco certo (o texto, o movimento, um som) para trazer à tona uma determinada emoção; e fazem-no de uma forma livre, sem constrangimentos.
Uma das coisas que mais me marcaram no cinema, de todos os filmes que vi até hoje, é a última cena do filme Ladrões de Bicicletas, de Vittorio De Sica. Nesta última cena da obra-prima do neo-realismo italiano, vemos um pai derrotado, que não controla as lágrimas, a caminhar por uma multidão tumultuosa com o filho de sete anos pela mão. A emoção pura de desgosto e de derrota, tristeza profunda, que o pai não pode esconder do filho; um homem esmagado por um sistema social que não lhe permite ser mais do que o sítio onde nasceu, rente ao chão. É por causa da emoção do pai que sentimos a bigorna esmagadora da humilhação, da pobreza; o beco a que muitos sentem que foram condenados. Seria um filme totalmente diferente sem a emoção tão específica que o actor usou para colorir a obra-prima do cinema a preto e branco.
Didi-Huberman, na obra que citei acima, descreve como as emoções passam também por gestos que efectuamos sem nos darmos conta e como isso é visível em cerimónias colectivas — usando o exemplo da morte do pai e do dia do funeral, e de como esses gestos «vêm muito longe no tempo», como “fósseis em movimento”, porque têm uma história de ritual muito longa e inconsciente. Mas se pensarmos, por exemplo, no evento de uma festa de casamento, podemos também constatar como as nossas emoções correspondem a gestos padronizados, como o riso, a euforia, a comoção alegre, como se os nossos comportamentos tivessem de passar por “emoções obrigatórias”. Penso que todos já sentimos essa obrigatoriedade e, se nos esforçarmos, aquilo que pode ser positivo inicialmente, acaba por se transformar em emoção real, uma espécie de fenómeno colectivo, seja do choro ou do riso. Escrevi sobretudo sobre estas duas emoções primárias, a alegria e a tristeza, mas há outras tantas que evitamos expressar, como o medo, a raiva, o nojo, o espanto. Empurramos as emoções para debaixo do tapete sempre que surgem, como se fossem uma visita inesperada numa casa pobre e suja.
Numa era em que nos tornamos cada vez mais autómatos em frente dos ecrãs, é importante reflectirmos sobre as emoções. Mas do que reflectirmos, expressá-las com todas as suas nuances e cores. Mesmo as que aleijam. Resistindo ao cinismo que coloquei propositadamente no título deste texto, a frase neutra, sem pontuação. Como se o dissesse de forma neutra uma máquina do nosso tempo: “Que emoção.”