Opinião

Com a cabeça na boca de Saturno

Lembrei-me desta obra de Goya porque penso que a Arte nos oferece sempre um ponto de partida para reflectirmos e uma crítica sobre os aspectos mais sombrios da natureza humana, nomeadamente no que se refere ao poder, ao medo e à intrínseca crueldade de se ser humano. Infelizmente há cada vez mais pessoas com a cabeça na boca de Saturno

Na sala 67 do Museu do Prado, em Madrid — sei porque já lá estive três vezes —, podemos ser trespassados pelas «Pinturas Negras» de Goya. É uma sala pouco iluminada, que está em sintonia com as pinturas e que convoca o lado mais sombrio do ser humano. Lembro-me da primeira vez que entrei nesta sala. Fiquei algum tempo a contemplar as imagens entre o fascínio e a perturbação, aquilo que é por excelência a definição do sublime na Arte — o belo e o horror, juntos. Tenho uma relação de profunda atracção com uma destas pinturas, «Saturno devorando um dos seus filhos»[1], como tenho com algumas pinturas de Francis Bacon, outro artista cujas obras nos fazem entrar em contacto com a lógica da sensação, como diria Deleuze. Somos trespassados pelas imagens, atravessados pelo sentir. «As Pinturas Negras» trata-se de um conjunto de obras que Goya criou directamente nas paredes de sua casa, a Quinta del Sordo, entre 1819 e 1823. Imaginem o que seria acordar e, antes mesmo de lavar a cara, depararmo-nos com aquelas imagens enormes e grotescas em nossa casa? A verdade é que já há algum tempo que quando acordamos assistimos a algumas imagens grotescas em vários pontos do mundo: Ucrânia, Palestina, América, entre tantos outros pináculos de horror. Preferia sem dúvida poder contemplar diariamente uma das pinturas negras de Goya ao acordar. Aquilo a que assistimos no mundo, hoje, não se trata de uma colecção de imagens com a dignidade e mestria artísticas da pintura, mas é certamente uma narrativa de circunstâncias escuras e sem uma asa de beleza.

Voltando a Goya, se Saturno é retratado de forma grotesca e violenta, comendo um dos seus filhos porque teme ser por este destronado, percebemos que é uma obra que reflecte uma visão sombria da natureza humana e do poder, que pode e deve ser interpretada à luz da actualidade. Pensemos, por exemplo, no abuso de poder e no autoritarismo. Em muitos cenários políticos actuais, líderes autoritários — não os vou nomear porque não quero convocar a besta ou as bestas — têm medo de ser desafiados ou destituídos e prejudicam até os próprios aliados ou as instituições que deveriam proteger; cá está, devoram os filhos e as filhas. Vivemos numa era em que o poder político, que é apenas uma marioneta do poder económico, como sabemos, se baseia em decisões cruéis e anti-éticas. Assim como Saturno tenta preservar o seu poder através de uma acção monstruosa, líderes e governos cometem hoje actos de crueldade à custa de políticas antipáticas. Antipáticas no sentido etimológico da palavra — sentimento de repulsa ou aversão instintiva por alguma coisa. E tudo isto para manterem governos que priorizam o poder a curto prazo, mesmo que isso tenha um custo elevado para o futuro.

E voltando a Saturno, também é evidente que esta pintura representa a resistência à mudança. Nas últimas décadas, voltámos a ter pessoas e grupos políticos que resistem com todas as suas forças às transformações necessárias para que as sociedades evoluam, temem sobretudo que essas mudanças desestabilizem uma posição de poder e os seus privilégios. Sabemos que o medo da mudança é um fertilizante envenenado que faz florescer com força muitos outros medos.

Há sobretudo um aspecto na pintura de Goya que me faz sentir agonia. Falo de uma sensação visceral, sobre a qual tenho batalhado como posso através da escrita — a cena grotesca e violenta de Saturno pintada por Goya é, para mim, uma metáfora clara (nem lhe chamaria metáfora porque é bastante literal) daquilo que é o poder do forte sobre o mais fraco. De todos os tipos de violência, ainda hoje, em plena segunda década do século XXI. Falo das minorias, falo dos mais fracos, sobretudo das mulheres e das crianças, mas não só, dos refugiados, dos imigrantes, das pessoas da comunidade LGBTQIA+, de todos aqueles que, por circunstâncias sociais, culturais, étnicas, entre outras, são comidos por Saturno, umas vezes assim, tal e qual como na pintura, decapitados à bruta, outras vezes aos bocadinhos, primeiro sem mãos e sem pernas, destituídos de confiança e dignidade, que é o mesmo que uma amputação física, até perderem a cabeça. Escrevo muitas vezes sobre este tema, o das minorias. Interessa-me o lado sombrio desta questão. A lei da natureza humana que talvez nunca tenha saído da selva, apenas construído uma nova geografia externa sofisticada, porque a interna mantém-se na maioria bastante primitiva. Há qualquer coisa de profundamente animal na pintura de Goya, como o há em todos os seres humanos, por mais que o tentemos colocar numa sala escura ou erradicar. Do ponto de vista maniqueísta, dois pólos, o bem e o mal. Um espectro no qual viajamos mais para um lado ou mais para o outro, mas julgando sempre — mesmo aqueles que são tidos como maus, os chamados monstros humanos — que fazem o bem, se não por um colectivo, pelo menos para si próprios.

Lembrei-me desta obra de Goya porque penso que a Arte nos oferece sempre um ponto de partida para reflectirmos e uma crítica sobre os aspectos mais sombrios da natureza humana, nomeadamente no que se refere ao poder, ao medo e à intrínseca crueldade de se ser humano. Infelizmente há cada vez mais pessoas com a cabeça na boca de Saturno.


[1] https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/saturno/18110a75-b0e7-430c-bc73-2a4d55893bd6