Opinião

Portugal e o Ártico: para quando o descongelamento do plano de ação para a região?

Recuperar o passado histórico poderá ajudar a estabelecer a proximidade e melhor apreciar o que une Portugal ao Ártico. A surpresa pode ser de que a distância é inexistente e foi criada ao longo do tempo. Isso permitirá desenvolver um plano de ação mais consciente da região e do que o Ártico já representou e pode representar para Portugal num futuro próximo repleto de desafios e oportunidades no Atlântico Norte e no Ártico

O Ártico, desde Pytheas até aos dias de hoje, é alternadamente desejado e esquecido, de acordo com interesses geopolíticos. Esta região, marcada por condições extremas e únicas, de difícil acesso, é retratada nas obras de autores de literatura de viagens de Jules Verne em Les aventures du capitaine Hatteras (1864) e Arthur Conan Doyle em The Captain of the Pole Star (1883).

Nos anos 80 do século XX, a região ressurge por questões ambientais com uma proposta de uma zona de paz, idealizada pelo presidente da então União Soviética Mikhail Gorbachev no ano de 1987 no seu discurso em Murmansk, com o objetivo de promover a cooperação na região. Assim, em 1991 foi criado o Arctic Environmental Protection Strategy (AEPS), também conhecido como Iniciativa Finlandesa. Era um acordo multilateral e não vinculativo entre os países árticos.

Esta iniciativa transformou-se no Arctic Council com a assinatura da Declaração de Ottawa em 1996, formalizando a colaboração intergovernamental entre os oitos países Árticos: Canadá, Estados Unidos da América (Alasca), Federação Russa, Finlândia, Islândia, Suécia, Noruega e Reino da Dinamarca (Gronelândia).

A Declaração de Ottawa define três categorias. A primeira são os membros, isto é, os oito países Árticos. A segunda categoria corresponde aos Permanent Participants, com a integração de seis organizações que representam os povos indígenas do Ártico. Podem influenciar os estados-membros, mas não têm voz na decisão final. E, por fim, a última categoria, Observadores, que permite a estados não árticos e organizações apresentarem a sua candidatura para integração como Observador no Conselho do Ártico – Arctic Council. Uma decisão que deverá ter a aprovação dos estados membros do Conselho do Ártico. De referir que até ao momento, apenas Estónia obteve resposta negativa em 2021 por parte do Arctic Council, após apresentação da sua candidatura em 2019 para obtenção do estatuto de Observador.

No caso da União Europeia, a situação é complexa e tem vindo a ser prorrogada desde 2009, com várias tentativas de candidaturas. Para alguns, a EU é um Observador ad-hoc, para outros é um permanent guest. A presidência deste conselho é rotativa, estando a Noruega a concluir o biénio 2023-2025, passando o testemunho à Dinamarca em maio para o biénio 2025-2027.

É notável o sucesso de quase trinta anos de paz e cooperação regional. Contudo, essa dinâmica está em transformações no contexto atual, desde a Guerra na Ucrânia iniciada em fevereiro de 2022, sob a liderança do atual presidente russo Vladimir Putin que adota uma postura diferente em relação à colaboração e cooperação na região. Alguns países árticos (nomeadamente Finlândia, Suécia e Noruega) foram manifestando preocupações sobre a crescente militarização na região desde 2007. O ano de 2007 corresponde à expedição Arktika desenvolvida pela Federação Russa que colocou a sua bandeira no fundo do mar. Evento que recoloca as atenções na região no início do novo século.

Porém, já em 2010, a Alemanha considerou o Oceano Ártico como o desafio marítimo mais profundo do futuro próximo, como refere a autora Margaret Blunden, num artigo publicado no jornal International Affairs em 2012. Em 2014, o relatório publicado pelo Heidelberg Institute for International Conflict Research considerou a região como uma área de conflito latente. A região ressurge como hotspot no século XXI.

Olhar para o Ártico é entender a complexidade dos temas interligados (alterações climáticas, oceano, criosfera, segurança/defesa, ciência, povos indígenas e cooperação) e perceber que o oceano, uno, liga o Atlântico e o Ártico por via de um processo das correntes marítimas designado de Atlantificação (Tesi, T. et al)1. Correntes quentes do Atlântico entram no oceano Ártico acelerando o degelo e provocando alterações nos ecossistemas. Significa que a segurança marítima, conforme explicitado na Bússola Estratégica do Conselho da União Europeia de 21 de março de 2022, terá de ser reforçada mais a norte bem como as parcerias com os Estados Árticos.

Neste primeiro quartel de século, o Ártico já não é somente um assunto dos países com território naquela região.

O Atlântico liga Este / Oeste / Norte e Sul. No que diz respeito ao Este e Oeste não parece haver dificuldade na interpretação da conexão e ligação aos continentes americano, africano e europeu. Já no que diz respeito ao Norte e Sul, parece ser mais difícil fazer a ligação aos Pólos: Norte (Ártico) e Sul (Antártida).

Num período em que muito se tem dito sobre algumas áreas do Ártico desde as palavras proferidas e intenções verbalizadas pelo presidente do Estados Unidos da América, Donald Trump, o que espera Portugal para demonstrar que entende a importância que esta região tem e terá a nível global, regional (Atlântico Norte) e nacional?

Um plano de ação para o Ártico: realidade ou mito

O imaginário da distância entre Atlântico e Ártico está a desvanecer-se passando a ser “um rio [Atlântico] que une” e “não um mar que separa” conforme proferiu o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, durante o seminário Diplomático realizado em janeiro de 2018, reforçando assim a ideia de maior cooperação entre todos no Atlântico.

Neste preciso momento, Portugal carece de um plano, de uma política para a região do Ártico que expresse os seus interesses e preocupações em relação a esta região e que ao mesmo tempo demonstre a conexão entre o Ártico e o Atlântico (Atlântico Norte), especialmente no que diz respeito à posição estratégica de Portugal. Ser um membro da União Europeia e seguir suas diretrizes não é suficiente para assegurar uma posição sólida em questões de governança relacionadas com os oceanos e os Pólos (incluindo-se Antártida e Himalaias).

Uma efetiva contribuição de Portugal na região depende da formulação de suas próprias estratégias e políticas, as quais devem, obviamente, estar em consonância com as diretrizes da União Europeia, que tem uma política para o Ártico (última revisão ocorreu em 2021). Alguns estados membros da UE com o estatuto de Observador no Conselho do Ártico têm uma política para o Ártico definida, como é o caso de: Alemanha, Espanha, França, Itália, Países Baixos e Polónia. Fora da União Europeia, o Brasil publicou em 2023 uma estratégia polar com um capítulo dedicado ao Ártico e os Emirados Árabes Unidos, em parceria com o Arctic Circle, definiram um programa com foco nos Himalaias, designado de terceiro Pólo.

No que a Portugal diz respeito, em 2021, um Projeto de Resolução pelo Partido Socialista. Este Projeto de Resolução (nº 919/XIV/2.ª) recomenda ao Governo que defina um quadro de ação para o Ártico. No entanto, devido às eleições de 2021, o progresso da proposta foi interrompido. Quando um governo é dissolvido, as propostas não são transferidas para o governo que inicia funções, sendo necessário reiniciar todo o processo. Após algumas reuniões em 2022 e 2023 para obter informações sobre o assunto, o tema foi recuperado.

Assim, o Partido Socialista apresentou nova proposta em 2023, Projeto de Resolução nº 675/XV/1, com a mesma recomendação, tendo baixado à comissão de ambiente. No texto Projeto de Resolução é reconhecido que Portugal está na linha da frente no que diz respeito aos impactos provocados pelas mudanças climáticas. O mesmo texto reconhece que a região do Ártico oferece oportunidades para desenvolver e aprofundar investigação no estudo do oceano. Situado no Atlântico Norte, o arquipélago dos Açores ocupa uma localização estrategicamente significativa. Assim, é do interesse nacional mitigar a potencial instabilidade na área, promovendo um Ártico seguro e desmilitarizado, considerando o papel de Portugal / Atlântico Norte como porta de entrada para o Oceano Ártico, conforme explicado no texto que recomenda ao governo que defina um plano de ação para o Ártico.

Analisando o texto dos Projetos de Resolução, verifica-se a ausência de um tema, considerado relevante e que não parece ter sido adequadamente abordado no documento: os Povos Indígenas do Ártico, o conhecimento do seu modo de vida e a importância que têm para a região e na região onde vivem desde tempos imemoriais. Os povos indígenas do Ártico são representados por seis organizações no Conselho do Ártico sob a designação de Permanent Participants, conforme acima referido. Os povos indígenas do Ártico são mencionados apenas uma vez. A ausência de referência aos povos indígenas de forma mais vincada e conhecedora do espaço geográfico em apreço nas recomendações apresentadas, pode sugerir uma lacuna na compreensão desta região.

Neste contexto, é importante destacar que o critério número 6, alíneas d) e e) dos procedimentos de candidatura a membro Observador no Conselho do Ártico estabelece que o candidato: d) respeita os valores, interesses, cultura e tradições dos povos indígenas do Ártico e de outros habitantes do Ártico e e) demonstrou vontade política, bem como capacidade financeira para contribuir para o trabalho dos Permanent Participants e de outros povos indígenas do Ártico (versão em língua inglesa: d) respects the values, interests, culture and traditions of Arctic indigenous peoples and other Arctic inhabitants e e) has demonstrated a political willingness as well as financial ability to contribute to the work of the Permanent Participants and other Arctic indigenous peoples).

De salientar que Portugal não ratificou a Convenção dos Povos Indígenas e Tribais, 1989 (também conhecido por ILO 169, 1989), mas apoiou a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (UNDPRI) (Nações Unidas, A/RES/61/295, 2007). Dos estados árticos, apenas a Noruega e o Reino da Dinamarca ratificaram a ILO 169, 1989.

A votação ocorre em 7 de junho de 2023, sendo publicada como Resolução nº 76/2023, em 29 de junho de 2023. Reproduzem-se aqui os três pontos da recomendação redigidos na Resolução nº 76/2023: 1- Desenvolva um quadro de ação nacional para o Ártico, em linha com os princípios do desenvolvimento sustentável, no qual se articulem as várias dimensões críticas em questão — ambiental, económica, social e securitária — em áreas que vão desde: a) As orientações para a frota de bandeira portuguesa; b) O combate às alterações climáticas; c) A proteção ambiental às oportunidades de investigação científica e de infraestruturas estratégicas; d) A segurança do Círculo Polar Ártico; 2- Contribua para a implementação da política integrada, atual e futura, da União Europeia para uma estratégia conjunta relativamente ao Ártico; 3- Considere uma candidatura portuguesa a Observador do Conselho do Ártico.

Neste contexto, desenvolver um plano de ação no caso do Ártico significa perceber a complexidade da região que liga alterações climáticas, oceano, criosfera, segurança/defesa, ciência, povos indígenas e cooperação.

Pensar num plano de ação, é conhecer os diferentes árticos e as suas especificidades. É perceber porque a beleza do branco da neve e do gelo (criosfera) são tão importantes no funcionamento da terra, porque o que acontece no Ártico não fica só no Ártico.

Elaborar um plano de ação é perceber de que forma Portugal fica afetado com o degelo do glaciar da Gronelândia (e da Antártida) e como isso contribui para o aumento do nível do mar que afeta as ilhas da Madeira e dos Açores bem como as zonas costeiras no continente.

Pensar num plano de ação é entender a importância dos povos indígenas e conhecer o seu modo de vida, assim como saber o quão relevante é o seu conhecimento tradicional e de que forma estão a ser afetados há décadas. Quantos leitores deste texto saberão que na União Europeia (na Finlândia e na Suécia) vive um povo indígena, conhecido como Sámi, sendo devidamente reconhecido pela UE?

Mas, acima de tudo, elaborar um plano de ação é ter a capacidade de olhar para o futuro e perspetivar vários cenários que ajudam na preparação do país para as mudanças rápidas que se verificam, sendo consequências das alterações climáticas.

A crescente importância da região para a segurança global, a proteção ambiental e o comércio internacional tornam imperativo que Portugal desenvolva uma estratégia específica para o Ártico e os Pólos. Uma política eficaz permitiria a Portugal não apenas contribuir para a cooperação e desenvolvimento da ciência na região, mas também aproveitar oportunidades emergentes e identificar os desafios em terra e no mar. Desta forma, Portugal recoloca-se estrategicamente no Atlântico Norte numa maior proximidade ao Ártico. Uma proximidade que já aconteceu aquando das explorações marítimas. Um recuar no tempo que permite recuperar modos de vida semelhantes entre, por exemplo, as ilhas dos Açores e os povos autóctones do Ártico na caça à baleia. Atividade banida nos anos 80 do século XX pela então Comunidade Económica Europeia (CEE).

Recuperar o passado histórico poderá ajudar a estabelecer a proximidade e melhor apreciar o que une Portugal ao Ártico. A surpresa pode ser de que a distância é inexistente e foi criada ao longo do tempo. Isso permitirá desenvolver um plano de ação mais consciente da região e do que o Ártico já representou e pode representar para Portugal num futuro próximo repleto de desafios e oportunidades no Atlântico Norte e no Ártico.

Através da colaboração com a União Europeia, a OTAN e outras partes interessadas, Portugal pode fortalecer a sua posição no cenário global e regional (Atlântico Norte e Ártico), destacando-se como um leader na governança do oceano, como um defensor do meio ambiente e da sustentabilidade, podendo aproveitar novas oportunidades no horizonte. Este é o momento para Portugal estar envolvido de forma estratégica e proativa na região, alinhando a sua política externa e de defesa com as tendências globais e assegurando a proteção dos seus interesses económicos e ambientais num futuro próximo.

Além disso, a elaboração de um plano de ação para o Ártico poderá influenciar a preparação de outros documentos de suma importância, tais como o Conceito Estratégico de Defesa Nacional e/ou uma Estratégia de Segurança Marítima (veja-se o exemplo de Espanha) nos quais o Ártico é tido como relevante ao ser incluído como região a ter em atenção nos próximos anos e décadas. Ademais de um plano de ação ser um trampolim para preparar uma candidatura para a obtenção do estatuto de Observador que seja consistente, coesa e forte, merecedora de resposta positiva por parte do Conselho do Ártico.

Está na hora de tirar a Resolução nº 76/2023 da gaveta.