As duas reuniões de Paris, convocadas por Macron para responder à trumpização da política internacional, revelaram o esperável vazio de projeto da Europa diante do enfrentamento imperialista assumido entre os Estados Unidos e a Rússia.
Trump quer resolver a guerra na Ucrânia à maneira de Ialta. E numa Ialta a dois, os imperialismos sentam-se à mesa para repartir entre eles os despojos da guerra. A proposta de Trump é chocantemente límpida: a Rússia fica com os territórios que quer e os Estados Unidos ficam com os recursos que ambicionam. Na mesa do negócio, imola-se a Ucrânia, transformada em nada pelos dois imperialismos. E a esse nada não se reconhece qualquer direito, a começar pelo de ser, autodeterminadamente, um povo soberano.
Agora é, por tudo isto, o tempo de a Europa clarificar que paz tem para contrapor à cultura de guerra partilhada pelos dois senhores imperiais. Era isso que tinha de ter sido discutido em Paris e não o envio de soldados europeus para selarem na Ucrânia o acordo entre os dois impérios.
A “longa paz” vivida na Europa depois da II Guerra Mundial não foi fruto da dissuasão dos dois blocos militares armados até ao infinito e mais além, mas sim a paz do quotidiano, da segurança das pessoas, assente em direitos sociais alargados e serviços públicos universais. Foi o contrato social amplo que gerou paz na Europa durante a Guerra Fria. E foi o ataque contra ele, alimentado pela voragem neoliberal, que deu pasto aos nacionalismos xenófobos e à reaceitação da guerra como horizonte.
Nos anos 50, a Europa esteve prestes a retirar do seu centro esse modelo social e de nele colocar aa criação de um exército europeu. Em resposta à Guerra Fria, as elites europeias quiseram dar prioridade à construção de uma Comunidade Europeia de Defesa. A derrota desse projeto foi, portanto, a derrota de quem quis mimetizar a agenda dos Estados Unidos e da URSS de então. E essa derrota deu espaço – financeiro, desde logo, - ao fortalecimento do Estado Social.
É, por tudo isto, estranho e inquietante que, à esquerda, se venha ressuscitar esse projeto da Comunidade Europeia de Defesa – fê-lo Rui Tavares no Expresso, no texto “O que deve a Europa fazer agora?”, para mais com a sugestão de europeização do arsenal nuclear francês e com a associação à tese governista de que acréscimos de gastos em defesa não devem contar no cálculo do défice público.
Não espanta que governos europeus, com presença crescente da extrema-direita, repliquem na Europa a receita militarista de Trump e de Putin, alimentando a ilusão de lhes disputar a vitória nas bombas, mesmo se a Europa já tem mais soldados que os Estados Unidos e uma despesa militar conjunta que ultrapassa largamente a da Federação Russa. Pouco surpreende que Bruxelas exiba a escolha entre defesa e direitos sociais, abrindo às armas uma exceção à regra da austeridade que aplica a todas as despesas essenciais. Já a esquerda, essa, só será alternativa se não desistir de contrapor a prioridade da paz do contrato social à prioridade da guerra travestida de defesa.
Não são os mísseis nucleares franceses nem os gastos militares ilimitados que darão à Europa capacidade defesa contra o trumpismo e contra o putinismo. É mesmo, como foi sempre, a paz da segurança das pessoas e dos seus direitos.
Europeizar as armas nucleares francesas? Nota a Rui Tavares
Não são os mísseis nucleares franceses nem os gastos militares ilimitados que darão à Europa capacidade defesa contra o trumpismo e contra o putinismo