Desde junho de 2023 que os termómetros registam de forma permanente um aumento de 1,5º graus da temperatura do planeta, em relação ao período pré-industrial. O objetivo do Acordo de Paris, de conter o limite do aumento da temperatura bem abaixo dos 2 graus, idealmente no limite de 1,5 graus até 2050, será ultrapassado já nesta década, mesmo nas abordagens mais conservadoras. Segundo o recente UNEP Emissions Gap Report, em todos os cenários possíveis, “será necessária uma futura e dispendiosa remoção em larga escala de dióxido de carbono da atmosfera para atenuar a ultrapassagem das metas de Paris.”
Em 2022 o registo era de +1,2 graus, e em junho de 2023 disparou em +0,3 graus, mantendo-se há 15 meses nos +1,5 graus. Neste mesmo período, entre 2023 e 2024, a temperatura dos oceanos disparou e está a bater todos os recordes, quer no Atlântico Norte, quer no hemisfério sul, principalmente junto da Antártica, acelerando muito o derretimento do gelo.
No passado dia 22 de Outubro, numa carta aberta de cientistas climáticos de todo o mundo é afirmado que a corrente do Atlântico pode entrar em colapso em breve, “com impactos devastadores e irreversíveis, especialmente para os países nórdicos, mas também para outras partes do mundo”.
Estas mudanças abruptas, que escaparam ao modelos matemáticos mais convencionais, foram no entanto consideradas como uma possibilidade real pelas Ciências do Sistema Terrestre, que estudam o comportamento sistémico do nosso planeta, em termos de trajetórias, entre estados alternativos separados por fronteiras, que são controladas por processos não lineares, com interações e “feedbacks”. Num famoso artigo de 2018, de Will Steffen, Johan Rocktsrom e colegas, afirmavam que “mesmo que a meta do Acordo de Paris delimitar o aumento de temperatura entre 1,5 °C a 2,0 °C, não podemos excluir o risco de que uma cascata de ‘feedbacks’ possa empurrar o sistema terrestre de forma irreversível para um caminho de ‘HotHouse Earth’”.
Mas, independentemente das diferentes abordagens científicas, a Física sabe que atingir os 1,5 graus significa que os oceanos evaporam muito mais água, que há muito mais energia na atmosfera e nos oceanos, aumentando a turbulência e os furacões, que as ondas de calor, secas, cheias e incêndios disparam em número e intensidade, o que por sua vez, num processo de retroação, dá origem a maiores emissões e menores remoções de CO2 da atmosfera, aumentando ainda mais a temperatura e os efeitos cascata da disrupção.
Domínios que não pertencem a ninguém
A todo este cenário não será com certeza estranho o facto de académicos de direito internacional, como John Vogler, afirmarem que “O ‘estado de natureza’ para os bens comuns globais é res nullius”, ou como Kathryn Milun, que reconhece que “os oceanos e a atmosfera se tornaram nas lixeiras da era industrial”. Segundo Milun “legalmente descritos como espaço não estatal, fora da soberania territorial, os bens comuns globais não são protegidos como domínios que pertencem a todos, res communis. Em vez disso, o direito internacional trata-os como domínios que não pertencem a ninguém, res nullius". A lixeira.
Perceber porque isto acontece, porque os dois grandes sistemas de circulação global são na realidade tratados como coisa de ninguém, é uma condição estrutural para perceber porque chegámos a este ponto, porque já não conseguimos sair dele, e que qualquer possível adaptação e/ou mitigação do problema que se pretenda eficaz, implica provavelmente intervir nesta questão estrutural.
Atualmente, os territórios por onde oceanos e atmosfera circulam possuem estatutos jurídicos bem definidos (zonas dentro ou fora dos territórios sujeitos à soberania dos Estados). Mas esta classificação jurídica dos territórios omite o facto de estes serem simultaneamente o espaço geográfico por onde os dois grandes sistemas de circulação global operam. Esta sobreposição de duas realidades distintas – uma estática e territorial reconhecida pelo direito (soberania), e outra qualitativa/funcional (digamos, o software do planeta), que pelo facto de ser global e indivisível não é reconhecida pelo direito, tem como resultado a existência de uma zona jurídica cinzenta.
Para todos os efeitos, o aspeto funcional é “externo” aos sistemas jurídicos e económicos internacionais, criando-se desta forma um vazio jurídico – a lixeira - para onde a economia envia “externalidades negativas” como a poluição, e para onde os ecossistemas enviam “externalidades positivas”, como se os fatores que suportam a vida nos fossem “externos”. Sendo “externos” à organização das sociedades humanas, não se geram efeitos jurídicos e, portanto, também se tornam invisíveis para a economia. Isto é, quando se realiza um dano não se gera um dever de reparar, e quando se realiza um benefício no clima, não se gera um direito a ser compensado. Nesta lógica, quem polui menos ganha um crédito que pode vender, e quem possui um ecossistema que gera benefícios a todos, não recebe nada por isso. Mais grave ainda, quem possui ecossistemas, só lhe resta a alternativa de destruí-los e transformá-los em mercadorias para gerar riqueza. E a pergunta é: existe hoje maior criação de riqueza para as sociedades do que a provisão de serviços de ecossistema, como a remoção de CO2 da atmosfera?
Depois de, em 1998, Malta ter proposto na ONU que o clima fosse reconhecido como Património Comum da Humanidade, como estávamos numa época em que ainda era cientificamente impossível definir e descrever o aspeto funcional do planeta, optou-se por uma solução semântica, abordando o problema em vez de proteger o bem comum em questão. Desta forma, não é o clima que é protegido e gerido como um bem de todos, mas antes, as alterações climáticas é que são consideradas uma Preocupação Comum da Humanidade – uma formula política vaga impossível de traduzir em termos de direitos e obrigações. Esta solução traduz-se numa tentativa de colocar menos lixo numa lixeira, sem alterar o estatuto da própria lixeira.
E ainda hoje, no preâmbulo do Acordo de Paris, continuamos reféns esta opção. Porque não se geram direitos e obrigações, comercializam-se quotas e créditos de poluição (fluxos), mas não existe nenhum sistema de incentivos à realização de remoções positivas do CO2 já acumulado em excesso, num bem que na realidade é res nullius. Assim, é sempre necessário existirem novas emissões para que seja reconhecido um valor nas remoções de CO2, que na verdade correspondem apenas a neutralizações da emissões atuais ou geração de créditos para realizar emissões futuras. Nesta lógica, quem polui menos vende o crédito, e quem remove CO2 no stock acumulado, limpa num vazio jurídico – o res nullius, a lixeira – e, portanto, ninguém paga. Nesta lógica, ninguém limpa o que é de ninguém. Como sabemos, o CO2 persiste na atmosfera em média 150 anos, e hoje não existe nenhum enquadramento legal para abordar o problema do CO2 já acumulado na atmosfera. Portanto, trabalhar-se apenas no controlo e neutralização de emissões correntes (fluxos) o que, com as novas tecnologias de captura, até permite aumentar as emissões, porque agora já existe uma solução para remover... Desta forma criou-se um dilema de desincentivo de redução de emissões, já reconhecido pelo European Scientific Advisory Board on Climate Change, o que levou a própria UE a limitar as remoções de CO2 (Regulamento EU. 2021/1119). Isto numa altura em que desesperamos por remoções sem gerarem créditos (a que chamamos remoções positivas) de CO2 da atmosfera.
Criação de valor dependente de uma nova emissão de CO2
Quando estamos numa situação de stock de CO2 acumulado em excesso na atmosfera (426 ppm, partes por milhão), muito acima dos limites máximos de segurança (350 ppm), limitar a estratégia de ação à redução e neutralização de fluxos, como acontece no atual Acordo de Paris, não chega. É preciso intervir no stock. Mas para além desta limitação objetiva, existe um outro problema associado, que é da maior relevância: uma estratégia apenas centrada no controlo dos fluxos, implica que a criação de valor fique sempre dependente da realização de uma nova emissão, que terá a capacidade de pagar a remoção. Isto é, não se reconhece a verdadeira criação de riqueza que os serviços de ecossistema significam para a economia, perpetuando uma economia que necessita de realizar novas emissões para que se reconheça a criação valor na remoção, para que as remoções possam ser pagas. Para todos os efeitos, as remoções de CO2 que não são utilizadas para neutralizar emissões correntes ou futuras, são feitas num vazio jurídico – que é hoje o clima/sistema climático – e desta forma não lhes é reconhecida existência, e consequentemente qualquer valor.
Alterar este quadro e lançar um projeto de “remoção e em larga escala de dióxido de carbono da atmosfera”, tal como apontado necessário no UNEP Emissions Gap Report, criando uma economia capaz de restaurar ecossistemas com esse objetivo, implica reconhecer que para que existam direitos e obrigações decorrentes dessa atividade de limpar a atmosfera, é necessário que haja um sujeito (Humanidade) e um objeto (o clima/sistema climático) sobre o qual esses direitos e deveres possam ser exercidos.
Um passo relevante para alterar este cenário foi a consagração no Artigo 15º, alínea f) da nossa Lei de Bases do Clima (ver vídeo), que estabeleceu o objetivo do reconhecimento do clima estável como Património Comum da Humanidade junto das Nações Unidas. Este objetivo fez de Portugal o primeiro país do mundo a reconhecer legalmente o aspeto funcional do planeta de forma autónoma do território, o que também já foi considerado como uma necessidade pela Comissão de Direito Internacional da ONU, quando no seu relatório 2021/2029 A/76/10 afirma que é necessário distinguir “espaço aéreo” do “aspeto funcional” da atmosfera.
Segundo a recente avaliação da Agência Europeia do Ambiente, a Europa está entre as zonas do planeta mais afetadas pelas alterações climáticas, e dentro desta, a Península Ibérica é a zona com mais riscos de incêndio, vagas de calor, cheias e secas. Parece-nos, por isso, que Portugal não só no seu próprio interesse, mas também no de toda a humanidade, tem o dever legal de promover que os oceanos e a atmosfera deixem de ser as “lixeiras da era industrial” - uma res nullius ou coisa de ninguém - e se transformem numa res communis, um património que deve ser gerido no interesse de toda a humanidade e das próximas gerações.
Em abril de 2023, na IX Reunião de Ministros do Ambiente da CPLP que teve lugar em Lubango, Angola, esta questão foi aberta e foi assumida a necessidade da sua discussão na Declaração Final. No passado dia 15 de outubro, realizámos um Seminário na Embaixada de Portugal em Brasília, onde participaram autoridades e académicos brasileiros, e mais passos foram dados. Transformar as atuais lixeiras da humanidade num património comum, não poderia ser uma missão da língua portuguesa? No próximo ano, na COP30 no Brasil, em Belém do Pará, será possível fazer a diferença? Porque não usar o caracter flexível do próprio Acordo de Paris, para introduzir a necessidade objetiva de remover sem gerar direitos de neutralização ou emissão, e desta forma iniciar a construção de uma economia regeneradora e capaz de gerar esperança nas atuais e futuras gerações?