Portugal está a passar por um ano atípico do ponto de vista eleitoral. A demissão do Primeiro-Ministro a 7 de novembro do ano passado ditou, por decisão do Presidente da República (PR), a realização de eleições legislativas no continente a 10 de março de 2024. Em seguida, o chumbo do orçamento regional de 2024, por um voto, no Parlamento dos Açores, levou, também, à dissolução da Assembleia Legislativa pelo PR e convocação de eleições, que se realizaram recentemente, a 4 de fevereiro. Segue-se que a Madeira está a enfrentar uma crise política desde 24 de janeiro deste ano, apenas parcos quatro meses depois do último escrutínio eleitoral, sendo ainda incerto qual será o futuro da região, que pode vir a apontar também para a realização de eleições depois de 25 de março, quando será possível dissolver o parlamento regional.
Qualquer que seja o resultado deste imbróglio, é certo que, além das eleições nacionais já certas, todos os portugueses serão chamados às urnas este ano, visto que estão marcadas eleições para o Parlamento Europeu, embora tendencialmente pouco participadas, para junho deste ano. Todas estas eleições têm algo em comum, seguindo uma tendência transnacional global: muito se fala – e muito se verifica – sobre o crescimento da extrema-direita.
Neste contexto, faz-se necessário questionar e esclarecer: o que é extremismo? Primeiramente, cabe notar que há diversas definições de extremismo e, principalmente, que elas são tendencialmente contextuais, ou seja, não são estanques, alteram-se, dependem de geografias e cronologias, do nosso contexto e do nosso tempo. Por exemplo, a escravidão no período colonial não era considerada extremista, assim como o regime de apartheid na África do Sul ou as políticas ativas de segregação racial nos EUA, ainda na primeira metade do século XX. Igualmente, tradicionalmente não definimos a Alemanha Nazi como um regime extremista, simplesmente porque este era o regime dominante, logo, a norma. Além disso, a noção de extremismo é sempre relacional, porque depende do nosso referencial – nada é extremista por si, mas o é em relação a qualquer outra coisa.
A definição mais simples utiliza de baliza o espectro político existente para categorizar como extremista tudo o que é um distanciamento do centro, ou seja, da norma. Aqui, não há necessariamente uma carga moral ou valorativa associada ao conceito de extremismo: esta definição não implica assumir o centro como o que é moderado. É extremista num contexto autocrático um democrata.
Visões mais complexificantes do conceito seguem uma definição que é, também, de base psicossocial. De acordo com esta linha, seguida pelo projeto de investigação europeu OppAttune – Countering Oppositional Political Extremism through Attuned Dialogue: track, attune, limit, no qual sou investigadora principal no contexto português, o extremismo está presente quando o pensamento de oposição se torna violento. É importante começar por clarificar que o pensamento de oposição é normal, desejável e salutar numa democracia. Democracias não se fazem de consenso. Os consensos, ou o aparente consenso, a falta de discordância e de contestação, é o que vemos numa ditadura. Contudo, quando o pensamento de oposição se torna violento, resvalando em discursos, práticas e políticas exclusionárias, estamos a falar de extremismo.
A literatura científica tradicional de PCVE, acrónimo para prevenção e combate ao extremismo violento, da qual bebem os especialistas tradicionais em estudos de segurança, contraterrorismo e radicalização, que costumam ter uma abordagem estatocêntrica, olha para estes fenómenos da perspectiva do que é visivelmente disruptivo, violento, que atenta à ordem vigente. Contudo, tendem a subvalorizar dimensões menos visíveis do extremismo, que são obviamente as que são mobilizadas por partidos que fazem parte do sistema (que estão estabelecidos e institucionalizados, jogam com o jogo democrático, mesmo que muitas vezes pisando o risco, e que vão a eleições), que não estão ativamente a defender posturas fisicamente, diretamente violentas contra outrem, mas cujo discurso é assente em premissas racistas, xenófobas e/ou populistas. Estes discursos criam a racionalidade ou a justificação intelectual e moral para a violência emergir, mas não sendo eles diretamente violentos, não estando a defender que se extermine indivíduos de outras etnias ou proveniências, ou com orientação sexual que foge à norma, por exemplo, passam muitas vezes despercebidos pelo eleitorado como partidos extremistas, porque o extremismo que apregoam está no âmbito da violência que não se vê.
Estou especificamente a falar de uma dimensão quotidiana do extremismo que é frequentemente subvalorizada e que é nada mais, nada menos do que a força motriz do extremismo violento. O extremismo quotidiano está expresso na interação do dia-a-dia, na normalização de símbolos, estórias, práticas e normas sociais que são exclusionárias, marginalizam, alienam, e discriminam partes da população, sejam eles imigrantes, refugiados, ciganos, pessoas economicamente desfavorecidas - ou até excessivamente favorecidas, guardadas as devidas proporções do impacto da exclusão - indivíduos LGBTQI+, negros, árabes, judeus, etc.
Este discurso extremista cada vez mais normalizado pode ser visto em diversos exemplos hoje no espaço público. Para o identificar, precisamos perceber que a sua estratégica é tendencialmente binária, ou seja, estes discursos se apresentam como uma (re)construção simbólica do “eu” e do “outro”, coletivamente traduzido em “nós” – os bons – e “eles”.
Este discurso é obviamente simplificador da complexidade do mundo e dos processos e estruturas que levam indivíduos a determinadas situações de vida. Eles negam a história e os factos, criando narrativas muitas vezes alternativas da realidade, e de-historicizam os processos políticos e sociais, olhando apenas para o tempo presente, sem preocupação com o contexto – ou com a preocupação ativa de isolamento dos acontecimentos relativamente aos seus contextos. Foi visto recentemente no caso das reações ao discurso do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, quando afirmou o óbvio e disse que os atentados terroristas do Hamas não aconteceram no vácuo; na proposta de Rishi Sunak de deportação de requerentes de asilo para o Ruanda; ou quando Donald Trump afirmou que a imigração descontrolada estaria a “envenenar o sangue” dos Estados Unidos da América.
Este discurso é premente no ressurgir do anti-semitismo, acompanhado pela islamofobia, por toda a Europa. Tem sido refletido em retrocessos em direitos fundamentais, como em Itália, com a revogação do direito de parentalidade partilhada por casais homossexuais, ou em Espanha, com propostas de se discutir a revogação da lei contra a violência de género.
Estando no âmbito do discurso, estas formulações não deixam de ser perigosas. Elas assentam na construção da ameaça e na mobilização de sentimentos de insegurança, e apelam para a divisão, a polarização e a exclusão. E funcionam, porque mexem com o nosso instinto mais básico, relacionado com a necessidade humana de pertença. Em última instância, estas palavras podem se tornar actos e ações. Quando são considerados normais, ou são normalizados e legitimados por pessoas em posições de destaque ou poder, têm o potencial de atentar contra a resiliência democrática e, na prática, contra mim e contra você. Para combatê-lo, é essencial perceber que todos temos o potencial de nos extremarmos, e todos nós reproduzimos em alguma medida discursos extremistas. Nos dias que correm, em tempos de eleições, precisamos compreender o que é o extremismo e assumir ativamente o nosso papel individual na propagação e normalização destes discursos que hoje são só palavras de descontentamento, mas amanhã podem passar a ações.