Opinião

A culpa é de Bruxelas

Os políticos nacionalizam os sucessos e europeízam as responsabilidades. Assim que se vêem confrontados com problemas fazem, como se nada tivessem que ver com o que é decidido lá na Europa

As manifestações de agricultores pela Europa estão a provar várias coisas: que os agricultores precisam de invadir as ruas com tractores e alfaias para se fazer ouvir, mas quando o fazem conseguem; que a Europa trata de maneira diferente as diferentes actividades económicas, protegendo umas mais que as outras; e, muito importante, que os políticos nacionais responsabilizam Bruxelas por tudo o que corre mal, enquanto se vangloriam de tudo o que corre bem, mesmo que provisoriamente.

Comecemos pelo fim: as costas largas de Bruxelas. A 28 de Junho de 2021, nos últimos dias da presidência portuguesa do Conselho da UE, Maria do Céu Antunes então, e ainda hoje, ministra da Agricultura, felicitava-se pelo sucesso alcançado na aprovação da nova Política Agrícola Comum. Dizia então a governante, na página do governo: “Hoje, conseguimos fechar a PAC mais ambiciosa de sempre. Esta era uma das principais prioridades da presidência portuguesa do Conselho da União Europeia (...). Foram seis meses de negociações muito intensas, que se traduziram num acordo determinante para garantir a sustentabilidade económica, social e ambiental do sistema agroalimentar europeu”. Uma maravilha e um sucesso de Portugal.

O orgulho e satisfação da ministra, em 2021, eram tais, que não se poupava nos elogios à sua própria obra: “Esta reforma garante o desenvolvimento das zonas rurais, permite implementar o Pacto Ecológico Europeu, contribui para a neutralidade carbónica, para a biodiversidade e para a segurança alimentar. (...) Queremos apoiar os agricultores e todo o sistema alimentar europeu, sempre com a preocupação de não deixar ninguém para trás”. Um sucesso de pouca dura, porém.

Dois anos e meio depois e várias dezenas de tractores na rua, e a mesma Maria do Céu Antunes vê pecados onde antes via virtudes. Afinal, “aquilo que os agricultores reivindicam é que exista uma maior capacidade da União Europeia, porque estamos a falar de política comum em agricultura, que tenhamos condições para dar sequência às suas necessidades, nomeadamente numa transição ecológica, produzindo de forma mais sustentável com os recursos que são mais escassos, nomeadamente de água, mas sem perder rendimento”, disse, numa entrevista à SIC notícias.

Seria injusto não dizer que não está a falar só da mesma coisa. Está também em causa da execução da PAC e das medidas que lhe estão associadas. Mas, convenhamos, a diferença é evidente. E tem uma explicação simples. Os políticos nacionalizam os sucessos e europeízam as responsabilidades. Assim que se vêem confrontados com problemas invocam as circunstâncias internacionais e as regras europeias como uma criança culpa os outros meninos sempre que alguma coisa se parte. E como se nada tivessem que ver com o que é decidido lá longe, em Bruxelas. Maria do Céu Antunes não é original, é só um excelente exemplo. Macron e Meloni fizeram parecido.

Emmanuel Macron foi a Bruxelas a semana passada, de peito feito e tom duro, negociar melhorias para as condições dos agricultores. Apesar de alguns explicitamente dizerem que muitos dos seus problemas eram fruto de regras francesas e não europeias. O que é curioso em tudo isto é que não lhes ocorre que o ganho político é provisório, mas o prejuízo é duradouro.

A Europa é constantemente apresentada como uma espécie de fada madrinha que dá coisas. Dá dinheiro, dá subsídios, dá mercado... dá. E é supostamente por isso que deve ser amada, pela sua generosidade. Porém, quando as coisas correm mal, a mesma Europa é uma vilã que tira, impõe, obriga, e fá-lo lá longe, em Bruxelas, sem escutar o povo nem envolvendo os nobres políticos. É essa mentira que prejudica gravemente a Europa. De resto, um Estudo divulgado pelo Comité das Regiões conclui que os partidos eurocépticos têm maior apoio no mundo rural. Em parte, é porque a política europeia tem penalizado os agricultores, mas em grande parte isso é porque a responsabilidade dessa política é apresentada como se fosse toda da distante Bruxelas.

A União Europeia é três coisas que este tipo de episódios tenta falsificar: é uma associação de Estados, não existe apesar dos Estados; é o resultado de negociações e compromissos, por isso é impossível ganhar tudo, precisamente para que ninguém perca completamente; e quem negoceia e decide em Bruxelas são deputados europeus eleitos nacionalmente e membros dos governos nacionais. Os burocratas existem, nas não votam no Parlamento nem se sentam no Conselho.

Há mais duas lições breves a retirar destas últimas semanas. Uma, é sobre a capacidade de reivindicação dos agricultores. Não há tantas manifestações na capital da UE como há nas capitais nacionais, mas vinte anos de Bruxelas ensinaram-me que as manifestações de agricultores e estivadores são as mais eficazes. Outros chegarão onde querem por outros meios.

A outra lição é sobre o diferente tratamento dado às diferentes importações. Quando o custo das importações era reduzido pelo baixo custo da mão de obra, não se fez nada; quando as importações são mais baratas por causa das regras ambientais, cria-se um Mecanismo Fronteiriço de Ajustamento Carbónico; quando a competição é com os agricultores, quer-se muito proteccionismo à entrada, mas não se poupa no incentivo às exportações. Como se fosse possível a quadratura do círculo.