Não é boa ideia, nem digno, depender da boa vontade de seja quem for.
Por isso discordo de que o financiamento da Cinemateca Portuguesa não esteja ainda enquadrado por um disposto legal “irreversível” e automático, e que continue sujeita à boa vontade dos governos que, quando menos sensíveis à criação e produção histórica e contemporânea cinematográfica, possam vir a eximir-se de responsabilidades só inquestionáveis para os que se preocupam e, nesse sentido, actuam para a qualificação da sociedade.
A Cinemateca Portuguesa, que agrega o fulcral Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM), é hoje financiada através de 20% das taxas destinadas à Produção e, o restante, mínimo e indispensável, pelo Fundo de Fomento Cultural – este, dependente de decisão governamental, à medida do estado de espírito do momento -, em que o ANIM se destaca pela acção notável de digitalização de todo o cinema feito até hoje.
Desde cedo outros países perceberam isto, como a Suécia, que em 1933 criou a primeira Cinemateca, liderada e concretizada por Bengt Idestam-Almquiste, e depois França, em 1936, com Georges Franju, Jean Mitry e Paul-Auguste Harlé e o fundamental Henri Langlois.
A Portuguesa nasce em 1948, consolidada por Manuel Félix Ribeiro (1948-1982), depois por Luís de Pina (1982-1991), João Bénard da Costa (1991-2009), Maria João Seixas (2010—2013) e José Manuel Costa que, desde 2014 e até hoje, soube encontrar na subdireção de Rui Machado uma linha de coordenação profícua que ainda promete concretizar a transposição para os novos tempos de percepção desassombrada de talentos desalinhados e inovadores que desde há muito se revelam e que, porque contrariam a praxis, ainda não encontraram aí o acolhimento útil e, por isso, obrigatório.
O risco de termos estes caminhos do nosso passado e do presente e futuro cobertos pela desatenção e poeira feroz é iminente, e tem de despertar a nossa percepção de que o vácuo apela ao seu preenchimento pela prevalência do espetáculo sobre o conteúdo, do buçal sobre as ideias, do leviano sobre o emotivo esclarecedor. E de que também a memória, quando desertificada, o faz. Princípio físico e existencial; mas então sem bússola nem escrutínio, absorvendo os estrépitos que se nos impõem com protagonismo encorpado por potentes mecanismos de Marketing e Inteligência Artificial. Salvo brilhantes exceções, o preenchimento acontecerá mas revelar-se-á então compósito e inorgânico e, sobretudo, fátuo, restringindo-nos a um hegeliano caos do inconsciente.
Por isso se torna vital financiar devidamente a Cinemateca Portuguesa, por obrigação estratégica e, logo, obrigatória, para o preenchimento orgânico da nossa memória, estruturado e abrangente, como ela tem vindo a fazer - mesmo quando ainda algo excludente -, transpondo o conhecimento do que se fez e faz para o plano do como e porque se faz para além do objecto do lucro estrito.