Exatamente no mesmo dia em que os neerlandeses deram a vitória a Geert Wilders, o candidato especificamente anti-islâmico e genericamente anti-imigração, e antieuropeísta, uma curta maioria de deputados ao Parlamento Europeu resolveu aprovar uma proposta de alterações aos Tratados que reforçariam o federalismo europeu, a diminuição do poder dos Estados membros e criaria desequilíbrios que prejudicam os países médios e pequenos. Uma coisa provavelmente inconsequente, porque não deverá acontecer, mas que dá os sinais errados a caminho das eleições europeias.
Em grande parte, inspirados pela péssima ideia da Conferência sobre o futuro da Europa, onde se ficcionou uma espécie de democracia direta com os populares que quisessem a participar em assembleias de cidadãos ad-hoc que fizeram várias sugestões. Todas, ou quase, obviamente federalistas.
Indo ao detalhe, os 305 deputados que votaram a favor (276 votaram contra), pretendem que se organize uma Convenção para reformar os Tratados (da última vez correu muito bem, como se lembram). Com que objetivo?
Tornar a eleição da Comissão Europeia num processo fundamentalmente dependente do Parlamento e subsidiariamente dependente do Conselho. Exatamente o contrário do que acontece agora. O resultado seria o “executivo” da União Europeia ser o produto de coligações partidárias em vez de ser um compromisso amplo, resultado do equilíbrio entre os diferentes Estados membros, as suas prioridades e as suas orientações políticas e que considera, mas não reflete exclusivamente, o resultado das eleições europeias, até para distribuir o poder pelos vários partidos e geografias. Menos consensual e mais divisiva, portanto.
Reduzir o número de Comissários. Com o argumento de que um dia serão tantos os Estados membros que não será viável ter 30 ou 35 Comissários, os Deputados europeus preferem que todos os cinco anos haja 15 ou 20 países sem lugar à mesa do Colégio de Comissários. Só quem não acompanha muito de perto como a Comissão funciona é que pode achar boa ideia deixar de ter um comissário de cada Estado membro. Sim, elas e eles não estão lá para representar os seus países (dizem as regras), mas obviamente garantem, no mínimo, um olhar nacional para os vários temas.
Basta consultar a lista pública das reuniões dos Comissários e dos seus gabinetes para ver como são a porta de entrada dos interesses, problemas e preocupações nacionais. Reforçar a Comissão (ou executivo, como lhe querem chamar) e reduzir a sua composição (quando os governos nacionais têm dezenas de membros), seria a maior machadada na relevância nacional dentro das Instituições europeias. Só sendo um crente na Europa apesar dos Estados é que se pode achar isto uma boa ideia.
O Parlamento Europeu quer mais decisões por maioria. Por duas razões. Porque assim é mais fácil decidir no Conselho, dizem. E porque assim o Parlamento participaria mais no processo legislativo. O problema é que isto inclui temas que não necessitam de ser tratados a nível Europeu, e inclui o já reduzido âmbito de temas que os países consideram demasiado fundamentais para aceitar que possam ser decididos contra o seu interesse.
Direito de iniciativa legislativa para o Parlamento Europeu. Uma falsa questão. O Parlamento, tal como o Conselho, já pode sugerir à Comissão que faça propostas em determinados temas e já discute o programa de trabalho da Comissão. E é o Parlamento na Europa com mais poder, porque participa em mais processos legislativos que qualquer outro. Acrescentar o direito de iniciativa (curiosamente sem o oferecer ao Conselho) só serviria para tornar as políticas europeias muito mais partidarizadas e menos definidas pelo compromisso. Mais dependentes de entusiasmos políticos e vontade de entusiasmar os eleitores, em vez da identificação, amplamente partilhada, da necessidade para o bom funcionamento da União.
Competência exclusiva da União em matéria de ambiente e biodiversidade. Precisamente quando as questões ambientais e climáticas e o impacto das medidas que lhes dizem respeito têm tanta discussão a nível nacional, em alguns casos levando ao apoio de partidos manifestamente distantes e adeptos do distanciamento da União Europeia.
Resumidamente, quando a importância e necessidade da União Europeia é evidente e manifesta, e atrai tantos países à sua volta, estes eurodeputados defendem soluções que, a pretexto de simplificar o processo de decisão e reforçar o poder do Parlamento, afastam os interesses nacionais dos processos de decisão. Como se a UE não fosse uma União de Estados.
Cabe agora aos governos, reunidos em Conselho Europeu em Bruxelas, dentro de duas semanas, decidir se abrem uma Convenção para lançar estas reformas, ou não. Presume-se que não, porque a maioria – incluindo os que até poderiam apoiar algumas mudanças - sabe muito bem que reformar os Tratados implicaria referendos que podem voltar a correr mal pelo menos em França, Países Baixos e Irlanda. E a Leste, se alguém perguntasse, seria bem capaz de correr ainda pior.
Por outro lado, porém, alguns países, a começar por Alemanha e França, gostam destas ideias. E embora saibam que não há espaço para as discutir em eleições ou referendos, podem aproveitar este incentivo para pôr algumas em prática, tão forçada e discretamente quanto os Tratados vão deixando. O que seria ainda pior.