Opinião

A funcionalização dos advogados

Rui da Silva Leal, membro do Conselho Superior do MP e candidato a bastonário da Ordem dos Advogados, considera "perigosíssimo" o projeto de lei do Governo para as ordens profissionais que vai ser discutido esta quarta-feira. Nesta crónica explica porquê

O Projeto de Lei (PJL) 108/XV pretende alterar a Lei 2/2013 relativa às Ordens profissionais.

É um projeto de lei perigosíssimo.

A Lei 2/2013, por si só, é já um diploma mal elaborado por não se ter conseguido perceber a essência e a natureza da Advocacia e por não se ter conseguido compreender que as diversas ordens profissionais têm as suas especificidades próprias, que não podem ser englobadas num único diploma legal regulador, a não ser que seja, normativamente, muito genérico.

Mas com este PJL, e no que à ordem dos Advogados respeita, torna-se evidente que a generalização é absolutamente errada. Com este PJL, o legislador demonstra não ter a mínima noção do que representa a Advocacia para o cidadão comum e para a subsistência do Estado de Direito Democrático.

O cidadão comum tem direito a Advogados competentes, livres e independentes e que cumpram escrupulosamente o segredo profissional. Sem um Advogado assim, o cidadão comum, cada um de nós, fica completamente desprotegido na defesa dos seus direitos, liberdades e garantias (DLG).

Que cidadão quererá um Advogado que não lhe pode assegurar que tudo o que lhe transmitir ficará apenas entre eles os dois, em absoluto segredo? Que cidadão quererá um Advogado em quem não pode confiar?

Que cidadão pretenderá ser patrocinado por um Advogado que é disciplinarmente regulado ou fiscalizado pelo Estado? Que cidadão pretenderá ser patrocinado por uma Advocacia subserviente, medrosa e manietada pelos poderes do Estado?

O que este PJL pretende é tudo isso e muito mais. Pretende, pura e simplesmente, esvaziar de sentido a competência disciplinar do Conselho Superior (o órgão de supervisão mencionado no PJL) que, de cerca de 20 membros, passará a ser composto por apenas 9, sendo que, destes, apenas 4 serão Advogados.

Além de que este Conselho Superior deixará de ter apenas funções disciplinares (e nos laudos) para passar a regular também as regras do estágio (incluindo a avaliação final), a legalidade dos atos dos demais órgãos da Ordem e a regulação do exercício da Advocacia. Com apenas 9 membros e somente 4 Advogados!

Ou seja, todos os atos dos órgãos da OA passam a ser controlados e fiscalizados por uma maioria de não Advogados; E, porque se reduz a composição daquele órgão, passa a prever-se que a OA possa celebrar protocolos com os serviços de fiscalização e de inspeção do Estado, em matéria disciplinar.

Reduziu-se a composição do órgão para, assim, de forma sub-reptícia, abrir a porta à intervenção disciplinar do Estado, controlando-se os Advogados e a Advocacia, e fiscalizando-se todos os atos de todos órgãos da OA por não Advogados.

E a partir daqui:

O Estado a instruir processos disciplinares em que são visados Advogados? A inquirir testemunhas, a analisar documentos, a promover as mais diversas diligências probatórias relativamente a um Advogado cujo exercício de funções está rigorosamente sujeito a segredo profissional?

E onde ficam a liberdade, a independência, a autonomia e o segredo profissional do Advogado e da Advocacia? E as “imunidades necessárias ao exercício do mandato“ que o artigo 208 da Constituição assegura aos Advogados? Pretende-se, de uma assentada, funcionalizar a Advocacia e os Advogados e controlar a OA! E assim acabar com a Advocacia livre e independente que, em Portugal - mesmo no estado novo - sempre existiu.

Depois, a permissão, mais uma vez genérica, para todas as Ordens, do exercício da profissão através de sociedades multidisciplinares. Sem que se perceba que, dessa forma, o segredo profissional do Advogado é irremediavelmente posto em causa.

Porque, por muitas normas que se elaborem prevendo a salvaguarda do segredo profissional, o certo é que outras profissões que integrem a sociedade multidisciplinar passarão a poder ter acesso ao que o cidadão transmitiu ao Advogado.

Sendo que essas outras profissões estarão sujeitas às regras disciplinares e outras, próprias das suas Ordens profissionais, que, em regra, dispõem de normas estatutárias bem diferentes das da Ordem dos Advogados.

E seja como seja, os factos transmitidos pelo cidadão ao Advogado passarão a estar à mercê do conhecimento de muitas outras pessoas que nada têm a ver com a Advocacia e que não têm a mínima noção da sua essência e da sua natureza, ou, tão-pouco, das suas causas.

E tudo isto sem que se perceba que o Advogado é o primeiro pilar na defesa dos DLG dos cidadãos e que, se o cidadão deixar de poder confiar na Advocacia, não mais poderá ver os seus DLG minimamente protegidos.

Sem que se perceba, nessa medida, a fundamental importância da Advocacia para a subsistência do Estado de Direito Democrático.

E por fim, pasme-se, retira-se à OA a sua primeira atribuição: a defesa dos interesses gerais dos cidadãos, esquecendo-se que a razão de existir da Advocacia e, portanto, da OA, é justamente essa. Essa atribuição passará a ser do provedor do cliente, agora obrigatório, que poderá não ser Advogado…

Não aligeiremos desta forma a normativização de questões tão importantes como estas e passemos a ponderar, a refletir e a sopesar devida e detalhadamente todos estes assuntos de importância crucial para a nossa democracia.

Não se negligencie os DLG dos cidadãos, nem, por isso, o Estado de Direito Democrático.

Não se pretenda amordaçar os Advogados e a OA e não se obrigue os Advogados - trata-se de mais de 35 mil Advogados - a adotar medidas muito drásticas em exclusiva defesa do cidadão comum.