Opinião

A fogueira das identidades (P/B)

O sociólogo Pedro Gomes Sanches diz que talvez fosse bom voltarmos a ler o artigo 2.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem

Marieke Lucas Rijneveld desistiu de traduzir o poema de Amanda Gorman. Se o leitor não faz ideia quem são estas senhoras, não se preocupe: hoje as pessoas são menos relevantes que aquilo que "representam" e que as polémicas em que estão envolvidas. E o que "representam" e a polémica, neste caso, explicam-se rapidamente: a primeira senhora é branca e holandesa, a segunda é negra e norte-americana. A segunda escreveu e declamou um poema na tomada de posse de Joe Biden, que a primeira se preparava para traduzir para holandês. Aqui as palavras-chave são: branca, negra e o pretérito imperfeito do verbo, preparava. Preparava, porque desistiu, e desistiu porque a turba twitteira não tolera que uma branca use palavras de uma negra.

A loucura não é nova. Por cá já tivemos o nosso episódio desse filme a preto e branco. Soul, o novo filme da Disney que retrata a cultura musical e a comunidade afro-americana não tinha, nos actores inicialmente escolhidos para a dobragem, nenhum negro. E a petição, reclamando representatividade, não se fez esperar: se o protagonista é negro, a dobragem tem de ser assegurada por uma voz negra. Voz negra, pergunta o estimado leitor? Isso: voz negra. Se não sabe o que é, não se preocupe, não está sozinho. Quem também está consigo é Marie-Emmanuelle Tano, uma negra, norte-americana, especialista em estudos africanos e, neste tema, inclinada para que a voz seja determinada mais por factores culturais que por questões étnicas. Ora, se isto não é óbvio, provavelmente é preconceito. Quem o diz é Nina Sun Eidshei, uma especialista em voz que publicou há dois anos The Race of Sound, atribuindo mais ao ouvido de quem ouve, que às cordas vocais de quem fala esses equívocos. Bom, Nina não lhe chamou preconceito, chamou-lhe assumpções. Preconceito chamo-lhe eu. E logro. E destruição da ordem liberal. Mas vamos por partes.

Primeiro, o preconceito. Se a variável relevante é cultural, para representar uma personagem da "cultura musical e da comunidade afro-americana" serviria um negro, sem queda para a música, nascido e criado em Cascais, filho de uma holandesa e de um jamaicano? Para os subscritores da petição parece que sim, porque o objectivo é assegurar uma "voz negra".

O problema desta convicção é que parte de um absurdo preconceituoso, o preconceito de quem vê um negro no lugar de uma pessoa. Mas, o que é um negro? Uma pessoa de tez negra, com ambos os pais a cumprirem o mesmo requisito? Ou basta um? O filho de uma holandesa loura, serve? E os avós? Até quantas gerações isso tem de ser verificado? E ao contrário, serve? Um branco com um qualquer remoto antepassado negro, pode reclamar essa identidade?

E eis-nos no logro. É que o que é advogado em nome da inclusão e do combate à discriminação não é mais que mero conflito e pura exclusão.

Se é verdade que a consciência de traços identitários associados a prejuízo e discriminação conduziu no passado à utilização activa desta consciência em favor dos direitos humanos, hoje as políticas identitárias fazem exactamente o contrário. É impossível, aqui, não recordar Martin Luther King. Não na memória já difusa do que ele representou - são cada vez mais difusas as memórias do passado - mas na memória exacta das suas palavras: Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos de ex-escravos e os filhos de ex-proprietários de escravos poderão sentar-se juntos à mesa da fraternidade.

Fraternidade?! - insurgem-se violenta e indignadamente os antifas e a tropa identitária - Acendam-se as fogueiras!, gritam. O que esta gente quer não é inclusão, é opróbrio sem expiação. Isso e a destruição da ordem liberal.

Hoje, as políticas identitárias subsumem o todo a uma parte do todo; tomam uma característica identitária e usam-na para definir toda a identidade, desumanizando a pessoa. Digo desumanizando, sim, porque esta desumanização alicerça-se numa falácia ululante: um negro, é também homem, tem também uma determinada orientação sexual, tem (ou não tem) também uma convicção religiosa, uma opção política, um lugar de origem, uma posição de classe, uma formação escolar de algum tipo, um modelo de família, e por aí fora vai. Somos, enquanto pessoas, a intercepção de várias fiadas identitárias. E é por isso que subtraí-las em favor de uma só nos desumaniza, amputando-nos do muito que também, e quiçá sobretudo, somos.

Francis Fukuyama pode não ter acertado no fim da História, mas adivinhou o episódio seguinte: «a irrupção de políticas identitárias nas democracias liberais modernas é uma das principais ameaças que elas defrontam e a não ser que consigamos o caminho de regresso a compreensões mais universais da dignidade humana condenar-nos-emos a contínuos conflitos». Para o evitar, talvez fosse bom voltarmos a ler o artigo 2.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.