Opinião

Sefarditas: depois do direito, a porta cerrada

Portugal não está a “conceder” nada aos descendentes dos judeus sefarditas; está, sim, a conceder‑se uma oportunidade de retidão e de elevação ao seu maior aprumo axiológico que produziu legislação pioneira, por exemplo, no que respeita à abolição da escravatura ou à pena de morte

Maria Regina Redinha e Miguel Bettencourt da Câmara *

A reconsideração da exigência de residência para atribuição da nacionalidade portuguesa aos descendentes dos judeus expulsos pelo édito de 1496 fez crer que a infeliz proposta de alteração da lei da nacionalidade era “caso julgado” e que tudo acabaria de forma elevada, porque retroceder no erro seria sempre maior do que a vã soberba de poder e querer.

Todavia, ao longo do processo legislativo, sucede‑se a discussão em torno da inclusão de requisitos de ligação efetiva a Portugal e do estabelecimento de um limite temporal de vigência para o regime especial dos descendentes sefarditas, como se o agravo tivesse prazo de validade e a reparação cabimento geracional.

Solução iníqua e discriminatória.

Iníqua porque persiste num dos mais estúpidos e autofágicos erros da história portuguesa que a Lei tentou relevar com a reparação possível operada pela Lei Orgânica 1/2013 e pelo Decreto‑Lei 30‑A/2015. Com efeito, a História não se reescreve censoriamente, não se projeta em banal dever‑ser anacrónico, nem se emenda com votos contritos de arrependimento, com lápides comemorativas nem com o derrube de estátuas. Tudo isso é poeira que a carruagem do tempo levanta e assenta sem consequência. A História que o é constrói‑se em atos e ideias atuantes que marcam as gentes e as instituições. Foi assim com a lei da nacionalidade que até hoje, literalmente, re‑animou milhares de judeus, formalizando, estatutariamente, o seu reencontro com a nephesh sefardita.

Exigir aos candidatos à naturalização uma ligação efetiva a Portugal, como condição de atribuição da nacionalidade portuguesa de que os seus avoengos foram impiamente expurgados é atitude de devedor relapso e contumaz que apequena, pela discriminação e opróbrio que veicula, o legislador de um povo plural e de uma nação singular. Os judeus sefarditas não abandonaram por ato livre e autónomo Portugal. Foram expulsos, perseguidos, acossados e espoliados de uma terra que haviam feito sua, onde deixaram marcas indeléveis de cultura, tradição e costume e onde perderam vidas, bens e até o eco de uma língua doce e encantada de lusitanidade. Têm o direito de regressar pelos passos da sua estirpe, sem condições ou condicionamentos, só pela prova de serem quem são.

Pretender estender aos sefarditas o critério da nacionalidade com ligação atual ao território é ignorar o passado, ignorar o presente e, mais uma vez, persistir na razão discriminatória e no equívoco jurídico:

i) No argumentário favorável para adicionais requisitos de atribuição da nacionalidade aos descendentes sefarditas figura sempre a utilização da faculdade legal para porta de entrada na UE. Pode ser que sim, em casos quantitativamente insignificantes. Mas qualquer legislador, mesmo na medíocre esquadria da lógica partidária, sabe que uma lei é sempre suscetível de utilização troponómica, isto é, poderá e será sempre utilizada para fora dos seus desígnios primeiros.

Não adianta, portanto, acrescentar condições, porque, a manter‑se o eventual descuido na aplicação, novos entorses surgirão. Apostamos singelo contra (muitos) dobrado(s).

Por outro lado, como qualquer iniciado na ars juridica sabe, há todo um arsenal normativo para usos fraudulentos ou indevidos. O Direito serve, sobretudo, para endireitar o torto.

ii) Preocupante é ainda o facto de se tentarem sindicar consciências quando se citam, por exemplo, as motivações individuais para obtenção da nacionalidade. O direito é regulação, não doutrinação!

Se um anglicano de ascendência sefardita quer a nacionalidade portuguesa para ir a Calais às compras, para fazer um retiro espiritual nas esplanadas do Algarve ou para uma romagem a Belmonte é com ele, connosco é o facto de os seus antepassados terem sido feitos estrangeiros à força da brutalidade e do fundamentalismo, sem que as suas gerações tenham até hoje encontrado porto seguro na sua identidade ou reconhecimento.

iii) Alega‑se também por aí que o recorte de um estatuto especial de acesso à nacionalidade não constitui discriminação antissemita porque o âmbito subjetivo da lei não se circunscreve a “judeus”, uma vez que hoje os descendentes dos sefarditas expulsos podem, igualmente, ser cristãos, muçulmanos ou ateus... Podem, mas nem por isso deixam de ter a sua identidade e o seu reconhecimento fundados no seu laço ao Am Sefardita, independentemente da religião que professem.

A discriminação avulta ainda no regime de favor dos adquirentes dos vistos gold, comparativamente com as exigências adicionais que se pretendem impor agora aos descendentes dos judeus expulsos no reinado de D. Manuel I, favor não contrariado pelo argumento de que os expulsos foram os seus ascendentes e não os atuais requerentes. A questão é bem outra: estes últimos têm ascendência portuguesa, ao passo que outros indivíduos sem vínculo sanguíneo ou territorial a Portugal viram ser-lhe atribuído o direito de nacionalidade, mediante simples contrapartida pecuniária, segundo diferente peso e medida.

iv) A nacionalidade integra o património dos direitos fundamentais com base constitucional e com ligação umbilical à dignidade humana, o que faz com que a cidadania não possa ser capturada sem limites pelo poder político‑legislativo, pois existe uma reserva normativa constitucional a respeitar pelo poder político que impõe restrições à liberdade do legislador.

v) Da mesma forma, a nacionalidade constitui um direito de personalidade. A nacionalidade exprime origem e pertença, é o eco do coletivo no individual, o estatuto que exprime e conforta a afinidade do ser com o outro. A efetivação do direito ao livre desenvolvimento da personalidade só se alcança com circunstâncias que permitam o pleno reencontro da pessoa com a sua matriz identitária, ou seja, as condições de possibilidade contidas no seu ser só abrem as portas do seu futuro com os pés assentes no presente e no “tempo infinito atrás de nós” (Levinas).

Além disso, estes descendentes sefarditas têm na atribuição da nacionalidade uma emanação do seu direito à identidade pessoal, o direito a verem reconhecida uma identidade que, inclusive, sustenta uma das duas principais liturgias judaicas e cujo livro de oração é vulgarmente conhecido até hoje como Sidur hispano‑português. Não é pouca coisa, como pouca coisa não são as romanzas e canticas e tantas outras manifestações religiosas e culturais.

Portugal não está, assim, a “conceder” nada aos descendentes dos judeus sefarditas; está, sim, a conceder‑se uma oportunidade de retidão e de elevação ao seu maior aprumo axiológico que produziu legislação pioneira, por exemplo, no que respeita à abolição da escravatura ou à pena de morte.

Por último, não se pense que mais de quinhentos anos dissiparam o seu segundo êxodo. Não! Quase todos os descendentes sefarditas, dispersos, conversos e reconversos carregam em si a perda identitária que só se regenera nas ruas estreitas da judiaria onde em cada porta procuram em vão a fechadura para as chaves de que há gerações sem conto são depositários.

Portugal não tem caso nem querela com esta questão e os Sefarditas de hoje, como os de antanho, não querem ser ou ter causa, só querem ter razão para se rever numa lei honrada e justa. Não lhes fechemos mais portas!

* Maria Regina Redinha é professora universitária e Miguel Bettencourt da Câmara é advogado