Diário da Peste,
2 de Maio
Bancos do jardim com fitas assinalando que ninguém se pode sentar.
Fitas vermelhas e brancas iguais às que cercam carros mal-estacionados.
O banco está mal-estacionado porque está vazio e isso é um convite.
Proibido sentar nos bancos que são feitos para sentar.
Em França, alguém faz ginástica - e lá ao fundo está uma grua.
São os dois únicos elementos que parecem vivos.
O homem levanta os braços inspirando e a grua não se mexe mas é mais alta.
As gruas são animais gigantes, animais de construção.
As máquinas de construção também ficaram na expectativa.
A grua deve estar parada há muito tempo. Deve também já estar doida.
Alguém com 62 anos diz: é complicado. Estou reformado, não vejo ninguém.
Boris Johnson dá ao filho o nome de dois médicos que lhe salvaram a vida.
Reino Unido com mais 621 vítimas mortais.
E em Itália continua, não pára. Quatro, sete, quatro.
Em outros pontos do mundo, por medo ou abandono: alguns corpos são esquecidos.
Em certas tribos, os homens que não tinham sido sepultados pelos familiares ou amigos eram chamados os insepulti.
Pascal Quignard fala disso.
Acreditava-se que ficavam a vaguear: nem na terra nem no céu.
U-topos: sem lugar. Os insepulti seriam, literalmente, “utopias: corpos sem lugar”.
Uma utopia em forma de corpo: nem no céu nem na terra. Os insepulti.
França vai impor uma quarentena de 14 dias a todas as pessoas que queiram entrar no país.
Aquele que chega demora duas semanas a passar as novas fronteiras.
Já não é espaço. Em 2020, a nova fronteira é tempo: 14 dias.
É preciso voltar aos rituais. Curvar a cabeça no momento certo para depois a conseguir levantar.
Há um tempo para tudo; e tudo exige um tempo para si.
O luto, a resistência e a alegria.
Quando tempo demoras a passar a fronteira?
Duas semanas. Mais tempo do que no século XIX.
Tonturas ontem; à tarde, deitado.
Corto a barba com a máquina que caiu à água há duas semanas mas sobreviveu como um náufrago de metal.
A máquina perde a memória facilmente.
Já não se lembra de nada – funciona.
Calor algumas horas. Mas o vento vem e diz que ainda existe.
Limoeiro a dar de si, algumas cores novas a surgirem da terra que é sempre da mesma cor.
Estranheza e respiração forte.
Sons de animais acostumados ao quente; os pequenos bichos regressam e trazem um desassossego de frequências baixas.
Lembra-me o Daniel Hahn que o cão de Freud sentiu o cheiro moribundo do dono e fugiu do quarto uns momentos antes da morte do drº psicanálise.
Deve haver algo de físico que vem para afugentar até cães dedicados.
Nenhum cão se assusta com uma ideia ou uma palavra; por isso a morte tem de ser um bicho qualquer. Talvez enorme - e nós não vemos.
“Uma mosca a zumbir ouvi – quando morri”. Emily Dickinson.
Alguns ventiladores chegam à Europa com indicações em mandarim.
Dez minutos não são suficientes para aprender chinês, diz alguém.
Imagino a necessidade de aprender uma língua para resolver uma situação urgente.
Jardim de Morya, o meu oráculo.
“Chegando aos cruzamentos, toma somente o caminho novo.”
Avançar pelo caminho novo até se chegar de novo a casa.
Um cruzamento só com buracos e armadilhas; e um século sem caminhos velhos.